Juliana Dal Piva

Jornalista, autora do livro "O Negócio do Jair - a história proibida do clã Bolsonaro"

Juliana Dal Piva

É proibido discutir os direitos das mulheres no Brasil

Uma vez mais, estamos discutindo sobre como evitar um retrocesso e não sobre como ampliar direitos

25/07/2024 às 11:58 | 3 min de leitura
Juliana Dal Piva
Juliana Dal Piva
redacao@brasilja.pt

Jornalista, autora do livro "O Negócio do Jair - a história proibida do clã Bolsonaro"

É proibido discutir seriamente a garantia dos direitos das mulheres no Brasil. Não me entenda errado, leitor. O Brasil é uma democracia e, como tal, está em construção permanente. Na Constituição, ficou descrito que os brasileiros não podem ser discriminados por credo, raça ou sexo. 

O texto de 1988 também demarcou a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Só que entre o texto constitucional e a realidade há um abismo e esse fosso se expressa de modo evidente na tentativa de prender mulheres que desejam interromper uma gravidez.

No Brasil, o Código Penal autoriza desde 1940 que mulheres interrompam a gestação quando são vítimas de estupro ou quando o prosseguimento da gravidez coloca a vida da mãe em risco ou, mais recentemente, a partir de 2012, nos casos de fetos anencéfalos. Afora as três situações, é crime abortar no Brasil.

A última mudança nas exceções para a realização de aborto ocorreu por ação do Supremo Tribunal Federal 12 anos atrás. Desde então, a discussão sobre o tema só retrocede e mantém o Brasil com uma das legislações mais restritivas do mundo enquanto seus vizinhos fizeram avanços significativos. 

Na Argentina, em 2020, foi autorizado o procedimento até a 14ª semana da gestação e, na Colômbia, em 2022, o aborto passou a ser possível até a 24ª.

Eis que, descontentes, os radicais de direita no Brasil querem apertar ainda mais o cerco contra os direitos das mulheres.

Em meados de junho, a Câmara dos Deputados aprovou um regime de urgência para a tramitação de um projeto de lei do deputado federal do Partido Liberal Sóstenes Cavalcante, um pastor evangélico conservador. Pressionado pela opinião pública, o presidente da Câmara, o deputado Arthur Lira, do Partido Progressista, decidiu segurar a discussão. No Brasil, tanto o Partido Liberal como o Partido Progressista se tornaram intervencionista e conservador.

Sóstenes Cavalcante defende que, nos casos previstos em lei, ou ele é feito até a 22ª semana ou a mulher poderá responder por homicídio. A violência desse projeto de lei sequer leva em consideração que, no crime de homicídio, o réu pode pegar até vinte anos de prisão. Já um estuprador, se condenado, recebe uma sentença de até dez anos.

Num país continental como o Brasil, não é impossível entender o motivo pelo qual um procedimento de aborto pode demorar até a 22ª semana ou até um pouco mais para ser realizado. São muitos os possíveis motivos. 

A ausência de educação sexual como política pública impede um amplo conhecimento sobre onde realizar o procedimento, gera estigma, promove resistência até em profissionais de saúde e resulta em uma dificuldade no próprio diagnóstico da gravidez, muitas vezes decorrente de violência sexual em crianças.

Pesquisas acadêmicas mostram que a maioria esmagadora dos casos de aborto legal no sistema de saúde brasileiro ocorre porque as mulheres engravidaram após serem estupradas. O dado é alarmante.

O Serviço de Informações Hospitalares mostra que ocorreram 11 257 abortos legais no Brasil entre 2019 e 2023 —por ano, são registradas cerca de 2 mil interrupções de gravidez. Desse total, 1 809 procedimentos —aproximadamente um em cada seis— foram realizados em meninas de até 19 anos. Só em 2023, 143 crianças de até 14 anos interromperam gestações.

Não existem estatísticas consolidadas sobre os motivos do procedimento nem sobre quantas semanas de gestação elas tinham quando fizeram o aborto. 

No artigo “Serviços de aborto legal no Brasil —um estudo nacional”, publicado em 2016, os pesquisadores Debora Diniz, professora da UnB, e Alberto Pereira Madeiro, da Universidade Estadual do Piauí, apontam um dado ainda mais brutal após análise de 1 283 prontuários de mulheres que realizaram aborto legal entre 2013 e 2015.

No levantamento, 94% das mulheres que passaram por um aborto engravidaram após serem estupradas. Os abortos em casos de anencefalia correspondem a apenas 5% do total, e só 1% foi feito por questões de risco à vida das gestantes. 

O estudo mostra ainda que 5% das mulheres realizam o procedimento após a 20ª de gestação —situação que as colocaria em potencial risco de serem condenadas a até 20 anos de prisão, caso o projeto de lei de Sóstenes Cavalcante seja aprovado.

Os reacionários brasileiros estão numa ofensiva contra os direitos das mulheres há muito tempo e obtiveram vitórias importantes desde 2010. As redes sociais são amplamente utilizadas, muitas vezes com mentiras e desinformação, para pressionar qualquer político favorável à descriminalização do aborto.

O próprio governo do presidente Lula não defende a bandeira, e ministros costumam dizer que esse não é um assunto do governo. Quase como responder que a saúde das mulheres brasileiras não os interessa.

O projeto do deputado Sóstenes pode ser, em breve, barrado de vez, porque a sociedade ficou chocada ao saber que uma mulher (ou mesmo uma criança) pode se condenada a uma pena maior que a de um estuprador. No entanto, os algozes dos direitos das mulheres seguem vencendo. 

Uma vez mais, estamos discutindo sobre como evitar um retrocesso e não sobre como ampliar direitos ou mesmo proteger mulheres e meninas de novas violências. Ao que parece, o direito à igualdade entre homens e mulheres ficou apenas no papel do texto constitucional.

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