Rute Fiúza e Cláudia Simões. Talvez elas não se conheçam, mas nós precisamos conhecer a história das duas. Ou melhor, uma parte da história das duas. Especificamente, a parte que as conecta e que nos diz muito sobre racismo, sobre polícia, sobre Estado.
24 de outubro de 2014. Salvador, Brasil. Naquele dia, enquanto caminhava com uma vizinha para comprar pão, Davi Fiúza, que à época tinha 16 anos, portanto um adolescente, foi abordado por policiais militares. Davi foi amarrado, encapuzado, colocado no porta-malas de um carro sem identificação oficial, e desapareceu.
19 de janeiro de 2020. Amadora, Portugal. Naquele dia, a criança Vitória Simões, então com 8 anos, havia apanhado um ônibus com sua mãe. Mas por ter esquecido o passe de transporte em casa, ouviu do motorista que não deveriam seguir dentro do veículo.
Aqui, uma informação que me parece relevante: crianças com idades entre 4 e 12 anos têm direito à gratuidade em todo o transporte da Área Metropolitana de Lisboa. Ter em mãos o passe que garante este direito é, portanto, uma questão menor. Por ter questionado o reclame do motorista, Cláudia foi vítima de agressão policial e, mais recentemente, condenada judicialmente.
Rute e Cláudia estão separadas por um oceano. Mas o fato de serem duas mulheres negras, ambas da diáspora africana, vítimas —direta ou indiretamente— da violência do Estado revela muito sobre a permanência da matriz colonial e racista na atuação do Estado. Tanto o brasileiro quanto o português.
É essa matriz que lembra o seguinte: uma criança negra não pode esquecer um passe de transporte; um adolescente negro não pode sair para comprar pão. Se uma destas situações acontece, o resultado pode ser o espancamento e condenação da mãe, ou pode ser o desaparecimento do filho.
Há quase dez anos, Rute Fiúza não tem notícias de Davi. Em 2023, ela recebeu o atestado de óbito do seu filho. Anos antes, em 2018, policiais foram indicados por sequestro, homicídio e ocultação de cadáver. Mas, ainda hoje, Rute não viu o corpo de Davi. Ela já percorreu delegacias, Instituto Médico Legal e até locais de “desova”.
E se fosse seu filho?
Só me lembro da música Chapa, de Emicida, em que ele canta assim:
“Chapa, ontem o sol nem surgiu, sua mãe chora
Não dá pra esquecer que a dor vem sem boi
Sentiu, lutou, ei djow, ilesa nada
Ela tá presa na de que ainda vai te ver”
O que aconteceu com Davi é, infelizmente, mais comum do que imaginamos.
Para termos uma ideia, nos últimos 50 anos, a Anistia Internacional tem trabalhado com casos de mais de quinhentas pessoas que foram vítimas de desaparecimentos forçados, que são, conforme a organização, crimes “perpetrados por agentes do Estado —ou pessoas agindo em seu nome— com uma recusa de reconhecer isto, ou esconder o destino ou paradeiro da pessoa, colocando-as fora da proteção da lei”.
Dentre tantos absurdos, o acórdão que condenou a mãe de Vitória, em julho deste ano, diz que “ninguém fez mal a Cláudia Simões”, que “Cláudia Simões é que deliberadamente atemorizou o motorista”.
Como escrevi em outro texto, publicado no site da BRASIL JÁ, Vitória viu a mãe ser violentada fisicamente, sair algemada dentro de um carro da polícia, chegar em casa horas depois com os supercílios machucados e a boca desfigurada.
E se fosse sua mãe?
O que aconteceu com Cláudia também não é, lamentavelmente, raro. Ao contrário, mulheres negras de zonas criminalizadas —de Portugal, do Brasil, dos Estados Unidos— são constantemente vítimas de abuso e violência policial.
Quem não se lembra de uma menina negra, em maio deste ano, gritando com policiais no meio da rua em Nova York para defender a sua mãe, uma mulher negra como Rita e Cláudia, de uma acusação falsa de roubo?
O problema não é um menino sair para comprar pão. O problema não é uma menina esquecer o passe do transporte em casa.
O problema, e isto é o que caracteriza os Estados brasileiro e português, é o fato do adolescente, da criança e das suas mães serem negras e negros. Porque, como tal, são imediatamente suspeitos. Aqui e lá.