Recentemente, a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen, afirmou que a União Europeia deve se preparar “urgentemente para os riscos” e a ameaça da guerra contra a Rússia e informou que apresentaria um plano sobre a primeira Estratégia Industrial de Defesa Europeia. Segundo ela, os estados-membros europeus devem “reconstruir, repor, e modernizar” as suas forças armadas. “Um dos objetivos centrais da estratégia, e do programa europeu de investimento na defesa que a acompanhará, é priorizar as aquisições conjuntas no domínio da defesa”, disse, referenciando o mesmo modelo realizado na aquisição de vacinas e gás natural. Von Der Leyen acrescentou, ainda, que a Europa deveria apoiar as condições para que a Ucrânia enfrentasse e vencesse a Rússia.
Rússia e Ucrânia têm ligações históricas umbilicais que não podem ser esquecidas. Os contribuintes europeus não foram informados, desde o início da guerra, que o primeiro Estado russo foi Kiev, entre os séculos 9 e 12, com a fusão dos eslavos e varegos; que em 882, o príncipe Oleg transformou Kiev em capital da Rússia; que três dos líderes da antiga União Soviética — Grigori Zinoziev, Nicolai Podgorny e Nikita Kruschev — nasceram na Ucrânia; e que o temor de que se use a Ucrânia para atacar a Rússia se reforçou, entre outros motivos, porque a partir de 2014 a CIA consolidou a parceria com a Ucrânia para espionar a Rússia. A crise entre os países se aprofundou justamente quando o presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovich, um aliado da Rússia, foi derrubado e ascendeu um governo alinhado ao ocidente. Na sequência, houve rebeliões separatistas que pediram o apoio de Putin. Segundo o intelectual e político Savas Matsas, com a guerra, “a Ucrânia se tornou uma espécie de semicolônia do ocidente, um protetorado dos Estados Unidos e uma base de guerra avançada da Otan”.
Von Der Leyen considerou, portanto, que o grande perigo para a Europa é a Rússia, revivendo o sentimento ocidental da Guerra Fria em relação à União Soviética; comparou a compra de vacinas durante a pandemia de Covid-19 com a aquisição de armamentos; e, claro, liberou, ao menos em tese, a possibilidade de a Alemanha produzir e consolidar uma forte indústria armamentista, como tinha ocorrido antes da Segunda Guerra Mundial. A proposta é geopolítica, com o objetivo de criar um complexo militar industrial similar ao norte-americano. A geopolítica é a ciência que estuda o Estado como organismo geográfico e analisa o equilíbrio de forças no espaço mundial e as condições pelas quais um determinado Estado pode se tornar uma grande potência. É preciso lembrar que todas as vezes, desde o século 19, que a Europa desenvolveu de forma potencial o investimento e a fabricação de armas, dando apoio aos militares, acabou por gerar conflitos e guerras.
Como se desenvolveu a produção de armas e se criou o complexo militar industrial americano?
O Complexo Militar Industrial dos EUA se desenvolveu e consolidou após a Segunda Guerra Mundial, em plena Guerra Fria. Em 1961, o general Dwight Eisenhower propusera, ao sair da presidência: “Nossas armas devem ser poderosas, prontas para ação instantânea, de tal sorte que nenhum agressor potencial possa ser tentado a arriscar sua própria destruição”. Anteriormente, a produção de armas durante a Primeira Guerra Mundial foi realizada por arsenais do governo. Durante a Segunda Guerra Mundial, no entanto, houve uma emergência nacional e se iniciou a aliança entre os industriais norte-americanos, financistas e militares.
Nos EUA, a prioridade na década de 1930 com o New Deal era o bem-estar social (Welfare State), proposto por Franklin Roosevelt para combater a miséria gerada pela Grande Depressão de 1929 (o crack da bolsa de Nova Iorque). Nesse período os americanos ocupavam a 18ª posição entre as forças terrestres mundiais. As grandes corporações não se interessavam por contratos militares, e as Forças Armadas não se dedicavam aos negócios ou à política. Os industriais e militares passaram a se preocupar com os contratos de armas quando Roosevelt mandou produzir cinquenta mil aviões no esforço de guerra. A partir desse período, os militares, por intermédio do Departamento de Produção de Guerra, obtiveram o controle da economia do país. O refrão para a população americana e para o mundo era que haveria uma futura guerra contra o inimigo soviético; logo, estava justificada a corrida armamentista. O governo começou, então, a financiar e isentar de impostos as novas indústrias.
Duas frentes passaram a existir: a que dava lucro sem precedente à indústria da guerra e o medo renovado constantemente na população, seja por linguagem direta, seja pela indústria do entretenimento. Falava-se da iminência de um conflito contra a União Soviética e do terror que seria se os comunistas vencessem. E, assim, justificavam-se os ilimitados gastos com o Complexo Militar Industrial. Hollywood foi aquinhoada com milhões de dólares para colaborar com o sentimento nacionalista e a realização de filmes com temas militaristas. O general Douglas MacArthur, um guerreiro profissional, resumiu: “A lógica passou a ser manter o povo em um estado permanente de pavor, ao mesmo tempo em que se reforçava a febre contínua de patriotismo, com o pretexto de uma grave emergência nacional. Tem havido sempre a ameaça de que uma potência estrangeira aniquilará os EUA se o povo não se sacrificar para fornecer ao governo os fundos suficientes para lhe fazer frente”.
Em 1949, o economista de Harvard Summer Slichter previa: “Enquanto tivermos uma Guerra Fria será difícil conceber uma depressão severa. A guerra aumenta a procura de mercadorias, ajuda a conservar um alto nível de emprego, auxilia o progresso tecnológico e, assim, auxilia o país e eleva o nível da vida. Podemos agradecer aos russos terem ajudado o capitalismo dos EUA a funcionar melhor do que nunca”. O bem-estar da nação ficou dependente da corrida armamentista e dos gastos federais, em oposição aos gastos considerados “socialistas” com saúde, educação, estradas, segurança interna etc. Os governos que aderiram à indústria da guerra passaram a ter como atividade principal o planejamento e a execução de guerras. Comprovando a afirmação tivemos os seguintes conflitos após a Segunda Guerra Mundial: Coréia; Vietnã; Camboja; Laos; Afeganistão; Iraque; Israel e Palestina; Caxemira; Timor-Leste; Angola; Moçambique; África do Sul etc.
Nota-se, portanto, que a prosperidade do Estado Moderno não se baseia na guerra total, mas nos seus preparativos para o conflito. Adotando esses princípios, após 1945 os EUA conseguiram o monopólio atômico e organizaram os países capitalistas da Europa no Tratado do Atlântico Norte, a Otan, para fazer frente à ameaça da “Cortina de Ferro”, a União Soviética. Congregou no início doze países e hoje conta com 31 —entre os europeus estão Alemanha, Bélgica, Bulgária, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Holanda, Hungria, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido, Romênia, Turquia e, mais recentemente, Suécia e Finlândia. Os EUA, no quadro da Otan, entregaram durante os anos da Guerra Fria numerosos armamentos aos seus parceiros europeus, que, a partir daí, passaram a fabricá-los sob licença e, mais tarde, abriram suas bases nacionais das indústrias de guerra. Um verdadeiro complexo militar industrial alemão ocidental renasceu das cinzas do seu antecessor nazista com empresas como Messerschmitt, Daimler, MTU e Rheinnetall. A UE definiu como meta a formação de empresas semelhantes às americanas, criando para isso a Agência Europeia de Armamento. Em 1991, por meio do tratado de Maastrich, a estrutura militar europeia ficou sob a liderança dos EUA. Mesmo com a dissolução da União Soviética, culminando no fim da Guerra Fria e da tensão radical leste-oeste, o mundo não conseguiu receber totalmente os dividendos da paz, porque o tratado de Varsóvia foi dissolvido e a Otan continuou a existir, sendo até ampliada ao atingir o leste europeu.
Finda a Guerra Fria, os EUA se apresentaram como potência hegemônica nos campos militar, econômico, político, tecnológico e cultural. A globalização e o complexo militar industrial se tornaram interdependentes. É o domínio político global construído pelos americanos com base na economia de mercado, com o subsequente enfraquecimento dos demais estados, que perdem sua soberania e suas prerrogativas políticas, econômicas e militares. É o monopólio de intervenção nos negócios e interesses de outros países. Logo, tudo o que não atenda aos EUA é considerado inimigo e consequentemente hostilizado pelo seu braço armado. Esse quadro determina a falência dos organismos internacionais, como é o caso da ONU, dos Estados Nacionais, do Estado-Nação, das instituições e da política de desenvolvimento social. “Os Estados podem ser reduzidos a simples territórios, e as nações, a um anacronismo” (Hirst,1998). É a nova ordem mundial estabelecendo o consenso de Washington e seu neoliberalismo. A política, em busca de solucionar problemas e crises, se desvincula dos seus objetivos sociais e se transforma na arte da mentira, do engodo, da farsa, da fraude e do subterfúgio. É a privatização do público pelos interesses do capital. Surge, portanto, um novo tipo de autoritarismo. A opinião pública passa a ser a opinião dos que controlam os grandes meios de comunicação, portadores do discurso ideológico homogeneizado e defensor das intervenções militares. É o fim do Estado e o início da privatização e, consequentemente, da globalização norte-americana. Temos o discurso único, a economia única e o mercado como panaceia universal.
É nesse contexto que a presidente Von Der Leyen coloca a Rússia como inimiga e núcleo do mal contra a Europa. Em consequência, propõe a militarização, a compra e a produção de armas para a União Europeia, ou seja, a criação de um complexo militar similar ao americano, com suas despesas pagas pelo contribuinte europeu. Pela tese defendida, a Europa civilizada que prega as propostas de pacifismo e humanismo universal passaria a defender e gastar com uma possível guerra. Em vez da paz, os governos se comprometeriam com a possibilidade de um conflito que poderia (ou pode) descambar, se ocorresse, na Terceira Guerra Mundial. Ainda bem que os europeus, tradicionais defensores do pacifismo e do humanismo universal, não endossam completamente essas propostas militaristas, pois defendem a paz e a democracia. Afinal, já foram vítimas de muitos conflitos em sua história.