“Lutamos contra a nossa família, contra os nossos irmãos. Se a guerra acabou e essa gente não olhou por nós, deveria fazê-lo”. “Alguns perderam a vida, outros foram presos, mutilados. Outros estão cansados, velhos, sem nada. Que reconheçam aqueles que se sacrificaram pelo bem-estar dos portugueses. Não foi pelo bem-estar dos guineenses, mas sim dos portugueses”.
Essas foram palavras ditas por homens negros, nascidos em África, que batalharam ao lado de Portugal durante a Guerra Colonial. São homens que, em depoimento à Divergente, na reportagem multimídia “Por ti, Portugal, eu juro”, relataram como, ainda hoje, veem o Estado português negar-lhes o que foi prometido. Está descrito assim no artigo 25º do Acordo de Argel: “o Governo Português pagará ainda as pensões de sangue, de invalidez e de reforma a que tenham direito quaisquer cidadãos da República da Guiné-Bissau por motivos de serviços prestados às forças armadas portuguesas”.
Mais do que seguir negando esta dívida, cinquenta anos após a assinatura do Acordo de Argel, a elite política e econômica portuguesa, no debate sobre as reparações, coloca-se como um Narciso. Diante do espelho, tem uma imensa dificuldade em reconhecer os efeitos perversos e duradouros da violência colonial, a ponto do ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, em intervenção na Assembleia da República no 15 de maio, dizer que a relação de Portugal com os países africanos de língua portuguesa é “de igual para igual (…), uma relação especialíssima, de excelência, alicerçada numa longa vida comum e na relação única entre povos irmãos”.
É esta mesma postura narcísica que justifica os levantes de membros dessas elites contra a declaração de Marcelo Rebelo de Sousa sobre a necessidade de Portugal avançar em reparações aos países que foram colonizados. Um comentarista chegou a afirmar que, ao dizer isto, o presidente da República teve “o dia mais infeliz do seu mandato”. As palavras de Marcelo foram suficientes até mesmo para a abertura de um processo, capitaneado pela extrema direita do país, por traição à pátria. Algo mais narcísico? O tema das reparações, vale enfatizar, é de foro institucional. Não se trata de cobrar alguns euros aos cidadãos e cidadãs portugueses que, em sua maioria, a bem da verdade, também não gozam de condições financeiras muito favoráveis. Mas se trata, sim, de entender que, ainda em 2024, há desigualdades que têm a sua raiz justamente na exploração colonial. Tomemos como exemplo o sistema prisional português.
No livro “Racismo no País dos Brancos Costumes”, a jornalista Joana Gorjão Henriques apresenta os seguintes dados: um em cada 73 cidadãos dos Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) com mais de 16 anos, residentes em Portugal, está preso; já em relação aos portugueses, na mesma faixa etária, a proporção é de um preso para cada 736 cidadãos. Será mesmo coincidência o fato de haver, no sistema prisional, dez vezes mais encarcerados de países africanos de língua portuguesa do que portugueses? Ou estamos falando de um aparato policial e uma estrutura judicial que funcionam de um modo para negros africanos e de outro modo para portugueses?
Vejamos o caso da habitação. Será mero acaso o fato das pessoas negras de países africanos estarem submetidas a condições ainda mais precárias, sendo, muitas vezes, a única alternativa a ocupação de áreas abandonadas e a construção de moradias sem energia elétrica ou água encanada? Um rápido exercício: vá ao Google e pesquise “demolições Bairro da Torre, Loures”. Pronto. Será fácil confirmar a origem e a cor da pele das pessoas que têm os seus barracos demolidos e ficam desalojadas em Portugal. Dificuldades de utilização do Serviço Nacional de Saúde, barreiras no acesso e permanência no ensino superior, obstáculos para conseguir emprego formal, entraves para a emissão de documentos. Poderia seguir falando aqui sobre desigualdades em outras áreas que, em pleno 2024, são heranças de outros tempos.
Violência e exploração. Não foi por acaso que, ao longo do texto, utilizei essas expressões para caracterizar o colonialismo. Fiz isto porque penso que, um aspecto essencial nesta discussão, é desnudarmos uma retórica —ainda presente— que imputa um caráter “brando” ao colonialismo português. Reproduzo aqui as palavras de Mariana Carneiro, em texto publicado em 2021: “o colonialismo português foi uma ocupação, foi expropriação, foi violência atroz […], um regime de permanente violência contra as populações africanas e de brutal violência repressiva da polícia política do Estado Novo nas colônias”. É isto que deve ser lembrado aos que insistem em tentar bloquear o debate sobre reparações: não há colonialismo sem violência, e o caso português não foi uma exceção. É urgente, portanto, deixarmos o Narciso sem espelho. Só assim será possível qualquer avanço neste tema.