Nonato Viegas

Diretor de Informação e editor-chefe da BRASIL JÁ

Nonato Viegas

O povo é quem mais ordena

Os portugueses, com a ajuda da Celeste Martins Caeiro e seus cravos, construíram —e devem se orgulhar— uma das mais belas imagens da conquista da liberdade por um povo.

25/04/2024 às 16:15 | 3 min de leitura

 Lugar de repórter é na rua, cunhou um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro, Ricardo Kotscho. E lá estive como repórter em momentos dramáticos —e emocionantes. Em 2013, para a revista piauí, testemunhei o germe da ocupação da extrema direita brasileira nas grandes manifestações de junho, que, passada por uma metamorfose, se tornaria, a partir de 2015, palco para a exposição desavergonhada do pior que o ser humano poderia produzir, como, por exemplo, a defesa da tortura ou a louvação à uma sanguinária ditadura. 

Testemunhei, ainda em 2013, porque estava na rua, a agressão contra militantes de partidos de esquerda impetrada por grupos de neonazistas. Também vi o nascimento do mantra “sem partido”, depois repetido pelas massas, no seio de meia dúzia de integralistas, os fascistas brasileiros, aproveitando-se da falta de consciência política de que, sem política, não há democracia. 

E que, no grito de “sem partido”, reside, sim, um posicionamento político. Lembro do medo que tive da repressão policial a estas manifestações. Desenvolvi estratégias próprias de sobrevivência quando, ao final dos protestos, tudo descambava para a violência gratuita e recreativa, incluindo jornalistas como vítimas preferenciais de todos os lados. 

Conto esta história para ilustrar como repórteres, na rua, sentem medo, ousadia, tristeza, satisfação, desprezo e emoção. É impossível passar inalterado quando se trata de interação individual ou coletiva. Foi o que me aconteceu em Lisboa no 25 de Abril de 2023.

Eu estava saindo da Assembleia da República, onde o presidente Lula estivera para a celebração dos 49 anos da democra - cia portuguesa. As ruas estavam fechadas, por conta da presença do chefe de Estado brasileiro e pelas manifestações prometi - das para a região. Tive, então, de me afastar do prédio até encontrar um local onde pudesse apanhar um carro. 

As ruas e casas estavam tomadas por cravos. “Grândola, Vila Morena” se repetia de maneira difusa, saindo de uma janela ou outra. Cruzei aleatoriamente com grupos de jovens —e nem tão jovens— que, de vez em quando, em uníssono, cantavam “Grândola, Vila Mo - rena Terra da fraternidade O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade”, numa das experiências mais belas e poéticas que tive a oportunidade de vivenciar.

Naquele momento, me senti ligado ao sentimento de libertação experimentado pelos portugueses naquele abril de 1974. E, mesmo não tendo vivido a ditadura nem em Portugal nem no Brasil, pude vislumbrar o que os brasileiros do outro lado do Atlântico sonharam quando sentiram o “cheirinho de alecrim” cantado por Chico Buarque. 

Os portugueses, com a ajuda da Celeste Martins Caeiro e seus cravos, construíram —e devem se orgulhar— uma das mais belas imagens da conquista da liberdade por um povo. E é disto que tratamos na edição de abril da BRASIL JÁ

Em Cabo Verde, que conquistou sua independência no ano seguinte ao 25 de Abril, o repórter Keiver Cardoso foi para a rua entrevistar Josefina Chantre, militante pela liberdade de seu país e pelo empoderamento das mulheres cabo-verdianas. Do alto de seus 82 anos, ela força a olhar sobre as conquistas como fruto de uma luta também da mulher. 

Ainda no conjunto do material dos cinquenta anos do 25 de Abril, as repórteres Larissa Silva e Stefani Costa, na rua, jogam luz sobre outra mulher guerreira: Conceição Matos, que ao narrar sua luta e a vitória da conquista democrática, lembra o terror da tortura a que outras mulheres também foram submetidas, algumas grávidas, ou - tras com filhos, pelo fascismo de Antônio Salazar. 

Os depoimentos de Josefina como de Conceição se complementam em tem - pos de cegueira e encantamento pela extrema direita portuguesa. E, para não dizer que não falei das flores, a jornalista Luciana Alvarez entrevistou o empresário António Quaresma, do grupo O Valor do Tempo, que mantém os valores do 25 de Abril vi - vos ao dar exemplo de economia social, em que importa o enriquecimento junto e o crescimento coletivo. 

Convido à leitura e à reflexão a partir da página trinta. Mas não acaba aí. brasil já também homenageia Portugal com um roteiro completo pelas doze vilas histórias do país. 

Esta edição conta um pouco da história, celebra o povo português e convida o leitor não apenas a folhear as belas imagens produzidas para a reportagem de Renata Telles, que subiu e desceu as ruas de pedra das cidadelas, mas a separar um tempo para sair à rua igualmente e se conectar com o passado do país, seja no deslumbre das construções medievais e milenares, seja na experiência de comer o melhor da gastronomia portuguesas em cada uma das vilas, seja em cantar “o povo é quem mais ordena” de “Grândola, Vila Morena” ou mesmo em percorrer o roteiro gastronômico de sabores do Brasil em Lisboa para compreender no que deu a mistura portuguesa, indígena e africana. 

No mais, aproveite a rua desta primavera, porque já brilha o sol e os cravos encantam. Boa leitura. 

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