"Repudio toda e qualquer forma de preconceito e discriminação. Infelizmente, há expressões que continuamos a perpetuar sem que nos debrucemos sobre o seu conteúdo. Errei ao usar uma dessas expressões na minha coletiva de imprensa. Reconheço que palavras têm poder e impacto, independentemente da intenção. Devemos todos questionar, pensar e melhorar todos os dias. Peço desculpa a todos e, em especial, às comunidades indígenas."
Muito honestamente, achei que nunca fosse acompanhar, ainda mais nos atrasados e conturbados dias de hoje, um pedido de perdão tão honesto e, especialmente, tão didático da boca de um estrangeiro de renome no Brasil.
Admito que esbocei um sorriso satisfatório quando li pela primeira vez o comunicado mencionado acima —e tive o cuidado (e o prazer) de reler mais algumas vezes.
Abel Ferreira foi prontamente (!) cirúrgico ao compreender o contexto no qual está inserido e, não menos importante, de não cair naquele velho e bizarro clichê de começar por proferir o famoso "para aqueles que se sentiram ofendidos...".
Mostrou que nunca é tarde para aprender e, acima de tudo, evoluir. Sim, o técnico português errou profundamente ao utilizar o termo "não somos um time de índios" durante a análise da vitória do Palmeiras, por 3 a 1, sobre o Atlético de Goiás, em julho passado, pelo Campeonato Brasileiro, ao tentar explicar que não houve desorganização por parte da sua equipe em campo.
É bem verdade que Abel há anos é um personagem ímpar do futebol brasileiro. Reclama e gesticula a todo instante, por tudo e qualquer coisa, dentro e fora das quatro linhas. É enérgico. Intenso. Controverso. Passa do limite vez(es) ou outra(s).
Obviamente deve ser criticado e cobrado por isso —é importante destacar esses defeitos, antes que alguém venha dizer que estou “passando pano para colonizador”.
Tiro mesmo o chapéu para um estrangeiro, especialmente um português, que assume um equívoco e/ou esteja disposto a conhecer melhor a cultura do (nosso) Brasil.
Todos nós estamos suscetíveis a erros, ainda mais quando temos uma educação forjada em outra cultura. Escrevo aqui com conhecimento de causa, visto que vivo isso de perto e diariamente como um brasileiro que mora há quase uma década em Portugal.
Com tamanho sucesso nas costas e blindado por uma torcida fanática, Abel “poderia muito bem” ter ignorado o assunto ou até mesmo usado alguma “muleta” para justificar a falha no discurso.
Felizmente, ele parou, assimilou e rapidamente afirmou de forma pública que está pronto para dar a volta por cima, diferentemente do compatriota Vítor Pereira. Escolhi a dedo o exemplo em questão para reforçar a minha defesa —não, não sou advogado— em relação ao acontecido recente com Abel Ferreira.
O antigo técnico de Corinthians e Flamengo também teve uma declaração imbecil e xenofóbica, mas, por sua vez, nunca pediu desculpas. Para piorar, sequer quis parar para tentar entender se estava errado ou não.
Em novembro do ano passado, desempregado e já bem longe do Brasil, Vítor usou a expressão “selvagens” para definir o perfil dos jovens brasileiros que são contratados pelos principais clubes da Europa, como havia sido o caso de Vitor Roque, que, na ocasião, tinha acabado de trocar o Athletico Paranaense pelo Barcelona, e de Endrick, então comprado do Palmeiras pelo Real Madrid.
Não, não foi uma questão semântica, tampouco de mero mal-entendido. Infelizmente, está intrínseco em muitos europeus a ideia de que tudo o que vem do outro lado do Oceano Atlântico, sobretudo da América do Sul, precisa ser “domesticado”.
Não somos animais. É fato que boa parte dos novos talentos do Brasil carecem muitas vezes de trabalho técnico e tático mais aprofundado. Mas qual garoto não precisa evoluir? Existem formas de explicar isso sem apelar para arrogância e preconceito.
Atualmente trabalhando na Arábia Saudita, Vitor Pereira poderia —ou deveria— ter acompanhado de perto lá atrás o trabalho profissional e exemplar que existe nas categorias de base de muitos times do futebol brasileiro.
A começar, quem diria, por Athletico Paranaense e Palmeiras. Não é necessariamente a Europa a única capaz de fazer crescer quem quer que seja. Há europeus espalhados por aí com mais de 40 anos, por exemplo, que até hoje acreditam que Portugal descobriu o Brasil.
Juram, inclusive, que a narrativa correta é essa. Na altura da “declaração selvagem”, cheguei a escrever uma crônica para Portugal e, sem qualquer surpresa, fui perseguido, insultado e até ameaçado por algumas pessoas, quase todas portuguesas.
O próprio Vítor Pereira, aliás, ficou incomodado com a minha opinião acerca do assunto, o que me deixou ainda mais preocupado e decepcionado.
Por tudo isso, o pedido de desculpa de Abel Ferreira, por mais simbólico ou protocolar que tenha sido, precisa ser exaltado. Que sirva de exemplo a todo e qualquer cidadão que esteja disposto a andar de mãos dadas com o racismo e a xenofobia