Revolução dos Cravos. Crédito: Manuel Almeida, Agência Lusa

Revolução dos Cravos. Crédito: Manuel Almeida, Agência Lusa

25 de Abril: Uma revolução ainda em construção

Processo Revolucionário em Curso teve início em abril de 1974 e terminou formalmente em abril de 1976, com a aprovação da Constituição

23/04/2024 às 09:15 | 6 min de leitura
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A Revolução dos Cravos mudou a história de Portugal e espalhou o "cheirinho de alecrim" —como cantou Chico Buarque— para todos os povos do mundo que sofriam com ditaduras, guerras, perda de direitos e repressão. 

O 25 de abril de 1974 marca a derrubada de uma ditadura de 48 anos, o fim do colonialismo e o início de um período revolucionário que traria muitas conquistas para a população portuguesa. 

Aquele dia de abril seria mais uma quinta qualquer de 1974, não fosse pela ação planejada pelo Movimento das Forças Armadas, o MFA. 

O movimento organizou um golpe de Estado que aconteceria de forma singular, diferente de Espanha e do Brasil, onde as elites se mantêm no poder. 

"Foi uma ruptura da estrutura social e política em Portugal", explicou à BRASIL JÁ o historiador Miguel Cardina, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. 

O fim da Primeira República no país ocorreu com um golpe militar na primavera de 1926. Antônio de Oliveira Salazar, que viria a ser o ditador do Estado Novo, estava neste contexto golpista. Viria, com a tomada do poder, a se tornar ministro das Finanças. 

Foram meses de completa imprevisibilidade, com muitas trocas de Chefes de Estado. Cada um representava uma facção do golpe militar. Só concordavam com a mudança do regime republicano, mas discordavam sobre todo o resto. 

Não demorou muito para que Salazar assumisse a presidência do Conselho de Ministro e dominasse a política portuguesa. Seu poder duraria pelos quarenta anos seguintes. 

A partir de 1933, numa espécie de “ditadura constitucionalizada”, Portugal viveu seu Estado Novo cheio de afinidades com outros estados autoritários, como o de Adolf Hitler, na Alemanha, e o de Benito Mussolini, na Itália. 

Revolução dos Cravos. Crédito: Arquivo

Além de autoritário, o Estado Novo foi um período de exacerbado sentimento tradicionalista, nacionalista e corporativista —marcas das quais até hoje o país tenta se livrar. 

A série de livros “A Lição de Salazar — Deus, Pátria e Família: a Trilogia da Educação Nacional”, distribuída em escolas àquela época, dá o tom da propaganda ideológica a que estava imersa a sociedade portuguesa. 

No livro, o homem era definido como provedor, e a mulher, no papel de dona de casa, era subalternizada. A própria lei portuguesa entendia, até 1967, que as mulheres portuguesas não eram plenamente cidadãs, estando elas subordinadas a algum homem, fosse o marido ou não. 

Sem a autorização masculina, a mulher não podia, por exemplo, hipotecar, comprar ou vender bens e adquirir títulos. Mulheres não podiam publicar textos nem se apresentar em julgamentos sem que seu cônjuge as autorizasse. 

Muitas carreiras profissionais eram proibidas para as mulheres e somente em algumas situações, raras e específicas, elas poderiam votar. 

Numa ilustração da série de livros aparecia um homem que chega do trabalho em uma casa (cheia de artigos religiosos) e é recebido pela mulher, que finaliza a refeição, e pelos filhos, que demonstram alegria com a sua chegada. 

Deus, Pátria e Família

O slogan Deus, Pátria e Família não era novo para Salazar. Ele o apanhara sem qualquer pudor do fascismo, ideologia à qual era simpático —suas versões atuais, nas bocas de André Ventura e Jair Bolsonaro, não chegam a ser surpreendentes. 

“O controle do comportamento pessoal foi usado por Salazar, por [Francisco] Franco, na Espanha, e por Getúlio Vargas, no Brasil. Todo regime autoritário, ditatorial, faz questão de controlar o comportamento das pessoas para que esse comportamento não crie a possibilidade de ações coletivas”, refletiu Paulo Baía, professor de ciências políticas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Segundo ele, governos autoritários “exercem pressão sobre o indivíduo e na família, para que coletivamente se exerça pressão sobre o conjunto das famílias”. 

Assim, disse ele, se controla a sociedade: “Foi um modelo usado em Portugal, mas também na Espanha e no Brasil”. 

De fato, o governo português dedicou tempo e esforço para moldar ideologicamente a população em suas plataformas sociais, econômicas e jurídicas. Os resultados falam por si. 

Um país destruído

Em 1960, a taxa de analfabetismo era de 40,4% da população, segundo o Museu Aljube. Em 1970, só havia água canalizada em 47,3% das casas portuguesas e esgotamento sanitário em 60,2%. 

Para manter a sociedade controlada dentro do que o regime salazarista defendia, órgãos foram criados para fiscalizar e punir pessoas que desobedecessem às regras, como a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide, (algo como o Dops, na ditadura brasileira). 

Seu objetivo era perseguir, prender, torturar e interrogar qualquer pessoa que fosse identificada como inimigo da ditadura —em Portugal e fora dele, como nas então colônias, sobretudo na perseguição aos nascentes movimentos de libertação desses países. 

Não demorou muito, porém, para que as pessoas se organizassem politicamente para lutar contra o regime. 

O mais longevo dos grupos, o Partido Comunista Português, o PCP, foi fundado em 1921 e teve papel fundamental na oposição. Os presídios da ditadura ficaram lotados neste período. 

População torturada

O Estado fez uso de tortura em homens, mulheres e crianças. À BRASIL JÁ, Maria Conceição Matos, militante do PCP, disse ter testemunhado mulheres sendo levadas com seus filhos para serem torturadas. Mulheres grávidas eram torturadas. 

Num dos casos, presenciados por Ção, como é conhecida, ela descreve: “Uma mulher estava grávida, eles lhe batiam na barriga dela e diziam que era para ajudar no parto. E ela abortou”. 

Havia espaços reservados para atacar os opositores da ditadura: o principal deles, a Cadeia do Aljube (hoje Museu do Aljube - Resistência e Liberdade); a prisão Fortaleza de Peniche (hoje Museu Nacional Resistência e Liberdade); e a prisão de Caxias. 

O Estado Novo criou campos de concentração nas colônias, algo que Salazar copiou de seu ídolo, na Alemanha. O principal era o de Tarrafal, em Cabo Verde, por onde passaram 375 presos entre 1936 e 1954. Para lá, foram levados republicanos, anarquistas, comunistas e socialistas. 

Portugal se isola internacionalmente

A resistência ao regime crescia à medida que a ditadura endurecia e se isolava internacionalmente. 

Além disso, a deflagração das guerras coloniais serviu de desgaste ao salazarismo. Portugal ainda mantinha Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste como suas colônias, explorando seus recursos e seu povo como mão de obra praticamente escrava, que, no Estado Novo, era chamada de indigenato. 

Basicamente, havia os cidadãos com direitos (os portugueses), e as pessoas juridicamente diminuídas, aquelas nascidas nos territórios coloniais. 

Mesmo os cabo-verdianos, tidos como portugueses por terem nascido em um território com status ultramarino, eram social e juridicamente “portugueses coloniais”, gente considerada de segunda classe, sem os mesmos direitos. 

Em 1944, o governo salazarista criou a Casa de Estudantes do Império, um projeto que funcionaria como uma preservação da unidade imperial, mas passou a ser um espaço de resistência e luta para os estudantes das colônias que vinham para Lisboa. 

Amílcar Cabral (Guiné-Bissau), Alda do Espírito Santo (São Tomé e Príncipe), Agostinho Neto (Angola) e Marcelino dos Santos (Moçambique) são alguns nomes que passaram pela Casa e que depois criaram os movimentos de libertação de seus países. 

Soldados com armas e cravos. Crédito: Arquivo

Diz o historiador Miguel Cardina: "A Casa de Estudantes vai ver nascer no seu interior uma perspectiva anticolonial, muito formada a partir de leituras e da criação daquilo que é uma nova cultura, que seja mais representativa do que é nação a se construir. Daí, nos boletins da Casa do Império, todos aqueles jovens terem publicado poemas, críticas literárias". 

A partir daí a luta anticolonial africana ganhou ambiente internacional favorável, principalmente com a influência política do marxismo e do leninismo e o apoio da União Soviética. Como resposta da ditadura, houve o envio das Forças Armadas para o início da Guerra Colonial. 

Em Angola, iniciou-se em março de 1961; logo depois em Guiné-Bissau, em janeiro de 1963; e em Moçambique, em 1964. Foram treze anos de guerra, e 150 mil militares enviados, com perda de dez mil soldados. A força portuguesa investia cada vez mais, mas ao mesmo tempo perdia a guerra. 

A crise aumentava em Portugal. Havia miséria, fome, e o governo insistia em investir na guerra. Em 1968, Salazar ficou impossibilitado de governar, e Marcello Caetano assumiu o Estado Novo. Em 1970, morreu Salazar. Em 1974, as despesas com os conflitos representavam 37% dos gastos do Estado. 

"É inegável que aquilo que constitui o sujeito político que vai derrubar a ditadura é a derrota da guerra. Se quisermos usar uma palavra, é o cansaço da guerra, o fato de Portugal lutar numa guerra por treze anos", afirma Miguel Cardina. As resistências à ditadura se acumulavam internamente neste período. 

Contestações ao fascismo e colonialismo

Muita gente, além da guerra, contestava o Estado fascista e colonial. "Republicanos, socialistas e depois, sobretudo na fase final do regime, católicos progressistas, a esquerda radical, inicialmente de matriz maoístas, depois os trotskistas radicais", enumerou Cardina. 

Segundo o historiador, o esgotamento da sociedade levou à adesão ao golpe de 25 de Abril: “Falamos aqui de uma sociedade que sofria muita censura, de pessoas que não podiam conversar na rua. É um tempo de medo e repressão. Muitos jovens, estudantes, trabalhadores, começaram também a se organizar e a se posicionar para enfrentar o regime”. 

O movimento sindical também é um marco. Em 1970, é fundada a Intersindical, que é a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, explicou Cardina: 

"E quando chega mais perto de 1974, há uma vaga grevista importante, é um período de crise mundial, que também chega a Portugal. A crise tem importância, mas não derruba o regime. Quem vai derrubar o regime é o Movimento das Forças Armadas". 

Neste contexto, fica cada vez mais difícil para o governo resistir às mobilizações e o 25 de Abril é uma construção. “A Revolução nasce em África”, afirmou Cardina. 

Revolução dos Cravos. Crédito: Arquivo

“A guerra se perde quando quem combate já não tem vontade de combater, não é só quando se perde nas armas”, afirmou o historiador. 

Neste momento, a revolução estava pronta. Orquestrada pelo Movimento das Forças Armadas, ela chegou por vários pontos de Lisboa, mas sua concentração ocorreu no Largo do Carmo, no Quartel do Carmo, onde o Marcello Caetano, que sucedeu a Salazar, decidiu se refugiar e resistir. 

O MFA organizou sinais que avisassem a guerrilha preparada para o caso de resistência de que a revolução tinha se iniciado. Entre os sinais estava a música “Grândola, Vila Morena”, tocada à 0h20 do dia 25 de abril. 

A música de José Afonso diz: “Grândola, vila morena, Terra da fraternidade, O povo é quem mais ordena Dentro de ti, ó cidade.” 

Por que o cravo simboliza a Revolução?

As ruas foram tomadas de gente e de alegria. As pessoas saíram de suas casas para participar do movimento e no meio da festa, pela manhã, uma senhora saiu para entregar cravos vermelhos a uma cliente. 

Celeste Martins Caeiro, vendo a cena, distribuiu os cravos aos militares que davam o golpe de Estado para derrubar o governo fascista que durava 48 anos. Assim nasce o nome Revolução dos Cravos. E se iniciou um período revolucionário, com muitas disputas políticas, de poder, de ideologia, uma fase decisiva para a construção da democracia portuguesa. 

O chamado Processo Revolucionário em Curso teve início em abril de 1974 e terminou formalmente em abril de 1976, com a aprovação da Constituição.

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