Crédito: André Kosters, Lusa

Crédito: André Kosters, Lusa

A democracia portuguesa em teste

Partido contestado deve aumentar sua representação no Parlamento e testa a resistência de Portugal

05/03/2024 às 11:42

A exemplo do que ocorreu no Brasil em 2018 e nos Estados Unidos em 2016, o establishment português duvida que o Chega alcance o poder nestas eleições. Não acendeu qualquer alerta nem mesmo o fato de o partido de extrema direita ter conseguido saltar de um para doze deputados na Assembleia da República em apenas uma legislatura. 

Na hipótese de eleger mais parlamentares, o Chega poderá ser chamado pela social-democracia, coligada como Aliança Democrática, a compor o governo. Os analistas políticos duvidam. Eles acham que a direita democrática não fechará os olhos para o discurso homofóbico, racista, xenofóbico e embebido em teorias conspiratórias falsas, sobre os mais diversos temas, como a de que existe um plano para a troca populacional da Europa.

Na Revolução dos Cravos, em 1974, Portugal optou pela democracia semipresidencialista, na qual os três poderes são divididos entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. A chefia do Estado é desempenhada pelo presidente da República, que possui poucos poderes representativos. Já o governo é exercido pelo primeiro-ministro, cargo que pode ser assumido pelo líder do partido com o maior número de votos nas eleições legislativas. 

O Parlamento, ou Assembleia da República, é um órgão unicamaral composto por 230 deputados. A legenda mais votada tem chances de assumir se formar maioria absoluta de parlamentares ou através de uma coligação entre partidos.

Apesar de o Chega ter se consolidado como a terceira força política no país e ser projetado por pesquisas com a ampliação de sua bancada, ficando atrás apenas do Partido Socialista (atual governo) e do Partido Social-Democrata (direita liberal), o jornalista e pesquisador Miguel Carvalho disse à BRASIL JÁ que o cenário para uma possível vitória que inclua o grupo de extrema direita é bastante inverossímil, mesmo com a tentação de alguns dirigentes da direita em fazer uma aliança. 

“Não acredito sequer em um acordo parlamentar. Não que Luís Montenegro [líder do PSD] não tenha essa tentação, mas os custos de alcançar o poder com o Chega seriam altíssimos e, talvez, irreversíveis”, afirmou.

André Ventura é o líder do Chega Crédito: Paulo Cunha, Lusa

A análise de Miguel sobre a possibilidade de uma aliança entre a social-democracia e a extrema direita não deve ser desprezada, dada sua experiência na pesquisa e na cobertura política de Portugal (ele foi repórter especial da revista Visão). 

No entanto, seus pares norte-americanos e brasileiros, também conhecedores da política em seus locais de atuação, erraram feio quando inicialmente negaram a possibilidade de o Partido Republicano dar a legenda a um outsider como Donald Trump para concorrer à Presidência dos Estados Unidos, ou quando acreditaram, no Brasil, que a social-democracia não apoiaria Jair Bolsonaro no segundo turno em 2018. 

O resultado nos dois países está dentro do que Miguel diz serem “custos altíssimos”. 

O Partido da Social-Democracia Brasileira, o PSDB, foi engolido pela extrema direita e, agora, tenta voltar a ter relevância entre os eleitores da direita liberal e democrática; e o Partido Republicano, nos Estados Unidos, se tornou praticamente um clube subserviente a Trump, relegando aos seus antigos nomes e ideólogos uma foto na parede em sua sede.

A constitucionalista Teresa Violante chama atenção para outro aspecto relevante: o fato de o Chega ser frequentemente qualificado como racista. Para ela, a premissa torna pertinente o debate sobre a legalidade do partido, sendo necessário o “reforço e a dignificação da instituição parlamentar por um quadro jurídico adequado para lidar com partidos que violam a Constituição”. 

“O nosso quadro normativo, sobretudo ao nível legislativo, está francamente obsoleto”, disse. A revogação da sua licença é da competência do Tribunal Constitucional, que só pode atuar sob requerimento do Ministério Público. 

“A ex-diplomata Ana Gomes [do Partido Socialista] e a advogada Carmo Afonso promoveram um processo de extinção do partido na Procuradoria-Geral da República, mas dele nada mais se soube”, disse à BRASIL JÁ, que enviou e-mail à assessoria de imprensa do órgão no dia 14 de fevereiro para saber o andamento da ação. Até o fechamento da reportagem, porém, não obteve resposta.

GAVETA: PGR está há 3 anos sem analisar ilegalidade do Chega

Para Marcela Magalhães, mestre em Direitos Humanos e Resolução de Conflitos Internacionais e pesquisadora na área, imigrantes estariam sob risco real de serem forçados a deixar Portugal mesmo levando em consideração o risco de o país colapsar por necessitar de mão de obra e da contribuição de imigrantes, que em 2022 deram à Segurança Social um superávit de 1,6 bilhão de euros: 

“A postura do Chega pode se traduzir em políticas mais severas de concessão de vistos e residência, dificultando o acesso a serviços básicos já sucateados através de altas taxações”. 

O líder do partido, André Ventura, anunciou que pretende na próxima legislatura criminalizar a residência irregular, acabar com os vistos destinados à Comunidade de Países de Língua Portuguesa, a CPLP, e criar cotas para a atribuição de vistos e nacionalidade.

Mas quem é André Ventura? Egresso de Algueirão Mem Martins, subúrbio de Sintra, região metropolitana de Lisboa, o líder político da extrema direita nasceu nove anos depois do 25 de Abril de 1974. André Claro Amaral Ventura cresceu no bairro que hoje diz “parecer a África” porque “só se vê pessoas negras”. 

Aos 41 anos recém-completados, o português de traços árabes e que um dia foi tímido e introspectivo, desejoso por ser padre e romancista, se tornou um populista.

Filho de uma secretária e um vendedor de peças de bicicletas, ele se batizou na Igreja Católica contra a vontade dos pais. Fez primeira comunhão, crisma e seguiu para o seminário. Afirmou ao jornal Expresso que praticava autoflagelo utilizando cilício e outros materiais de castigo. 

Também, segundo disse ao jornal Polígrafo, experimentou drogas no período da universidade. Ao desistir de se tornar padre, afirmou sentir atração por mulheres e não ter encontrado no seminário “ambiente de espiritualidade”. Enquanto cursava direito, viveu em Lisboa, na casa de acolhimento da Paróquia de São Nicolau, administrada pelo padre Mário Rui Pedras — mesmo alvo de denúncias envolvendo abusos sexuais dentro da Igreja Católica, Ventura o classifica como seu “mentor espiritual”. Formou-se em direito pela Universidade Nova de Lisboa e fez doutorado em Direito Público na Universidade de Cork, na Irlanda. 

Na tese entregue em 2013, o então social-democrata criticou a “estigmatização de minorias”, o preconceito racial nas forças policiais —as mesmas de que hoje se diz aliado— e o uso do “populismo penal”, hoje usado por ele como recurso retórico. O deputado deu aulas na instituição portuguesa em que se graduou e na Universidade Autônoma de Lisboa, onde foi professor até 2019. “Ele costumava ser uma pessoa normal e progressista. 

Deus o perdoe por ter se tornado um idiota fascista”, declarou Olufemi Amao, ex-amigo e hoje professor na Faculdade de Direito da Universidade de Sussex, no Reino Unido.

DO EDITOR: O sapo e a panela

Mesmo publicamente adotando um discurso pudico e homofóbico, Ventura esbarrou na devassidão e na homossexualidade —ao menos na ficção. Escreveu dois romances de conteúdo erótico. Num deles narra os últimos meses de vida do líder da Autoridade Palestina Yasser Arafat. Retrata-o como gay e com HIV. Em outro, o personagem Luís Montenegro, que Ventura jura não ser seu ex-colega de partido, é um devasso —também com HIV. 

A liberdade sexual nos dois livros não vem sem culpa (talvez católica?) e uma suposta punição, o HIV. Para o publicitário João Gomes Almeida, o ex-consultor de comunicação de Ventura, “todos os livros são golpes de marketing”. Um exemplo foi quando, por orientação de Almeida, o político passou a dar declarações sem lastro na realidade contrárias à comunidade cigana.

Depois de abandonar o PSD em 2018, André Ventura precisou de três anos para conquistar 496 mil votos como candidato à Presidência de Portugal. Em seguida, nas legislativas de 2022, obteve 400 mil votos e ampliou o número de deputados do partido no Parlamento de um para doze.

Brasileiros no Chega

O número de brasileiros em Portugal (com ou sem documentação) é estimado em mais de 800 mil, cerca de 8% dos onze milhões de habitantes. Dados do Ministério da Justiça mostram que, entre 2010 e 2023, cerca de quinhentos mil brasileiros obtiveram a cidadania portuguesa. Apesar de nem todos estarem aptos a votar, a extrema direita local percebeu que era possível engajar politicamente parte dessa comunidade, que também inclui perfis de classe média alta, como empresários. Lucinda Ribeiro foi pioneira neste segmento. 

A analista de dados foi a filiada número seis do Chega e administrou cem grupos conservadores e antissocialistas nas redes sociais. Segundo o jornalista Miguel Carvalho, Ribeiro foi decisiva na guerra cultural travada pelo partido nas questões da família e da imigração. A mulher, porém, deixou a legenda para aderir a um grupo de negacionistas durante a pandemia. Procurada pela BRASIL JÁ, ela respondeu que não estava “disponível para entrevistas políticas”.

Há mais brasileiros nas trincheiras da extrema direita portuguesa. Cibelli Pinheiro de Almeida é doutora em Ciências da Comunicação e sobrinha de um ex-deputado do Partido Comunista do Brasil, o PCdoB. Ela foi uma das fundadoras do Chega —assinou a ficha 501. Em 2021, denunciou sofrer xenofobia dentro do partido. 

Mas, segundo afirmou agora à BRASIL JÁ, tudo não passou do “calor da emoção”, o então deputado Filipe Melo —que é contra a presença de imigrantes em Portugal— “expressou-se de forma inadequada”. Tudo foi resolvido. 

“Nunca me desfiliei [do Chega] nem pretendo. Os problemas internos ocorrem em todo e qualquer partido, especialmente no seu início. Hoje, além de crescer muito e rapidamente, o Chega amadureceu. Todos nós falhamos, mas aprendemos com os erros”, disse. Almeida é vice-presidente da Associação Família Conservadora de Braga, onde reside com a família há treze anos.

EUA: O mundo de Trump

Outro brasileiro nas fileiras do Chega é o professor de jiu-jitsu Marcus dos Santos. No ano passado, o vice-presidente do partido no Porto fez um discurso durante a convenção da legenda negando a existência de racismo ou qualquer tipo de preconceito dentro da agremiação política. 

Apesar de ser um homem negro, o ex-lutador de MMA afirmou que a Europa é branca, e assim deve permanecer, e que Portugal pertence aos portugueses (o que é óbvio) e que ele estava ali para defender esses valores. 

Santos viveu nos EUA e respondeu, no Rio de Janeiro, a um processo por roubo qualificado, posteriormente arquivado. Ele quer, agora, ser o primeiro deputado brasileiro eleito no país. No dia 29 de janeiro, a BRASIL JÁ o procurou por mensagem no celular com um pedido de entrevista, mas ele não retornou o contato.

No auge do governo Bolsonaro no Brasil, o Chega ainda não tinha força na Assembleia da República. Todavia, com a ascensão do partido na institucionalidade, as interações foram se intensificando. Quem exerceu forte influência para a aproximação da extrema direita portuguesa com a brasileira foi o deputado Luís Roberto Lorenzato. 

Filiado ao partido italiano Liga (da extrema direita) e próximo do vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, Lorenzato é aliado do deputado brasileiro Eduardo Bolsonaro, do Partido Liberal de São Paulo, filho do ex-presidente do Brasil. 

“Gabriel Mithá Ribeiro, talvez o mais consistente dos deputados do Chega do ponto de vista ideológico, também manteve diversos contatos com o universo de amizades e fidelidades de Olavo de Carvalho”, disse à BRASIL JÁ Miguel Carvalho, jornalista citado no início desta reportagem.

André Ventura e seus aliados reproduzem táticas testadas pela extrema direita brasileira, como a abordagem das chamadas pautas de costumes, a tática de criar “pânico moral” e o reforço a preconceitos estruturais da sociedade portuguesa, como no caso da ciganofobia e da islamofobia. 

Esse método consiste em criar inimigos externos fictícios para justificar políticas nacionalistas e de anti-imigração, enquanto as bases que mantêm as desigualdades, como a precarização do trabalho e as disparidades salariais existentes, permanecem preservadas. Também foi testado pela extrema direita no Brasil questionar sem qualquer lastro a lisura do processo eleitoral ou das urnas, sugerindo haver fraude. 

É um tema recorrente o falso conceito chamado de “ideologia de gênero” —algo que não existe nem no campo teórico nem no prático, mas que é tratado em seus discursos como fato, como se houvesse uma conspiração mundial para atacar e tirar a inocência das crianças. Ora, foi André Ventura quem, em um de seus livros, Montenegro, de 2008, fez metáforas perigosas envolvendo crianças. 

Na página 29, diz, ao narrar uma cena de sexo, que a mulher tinha “uma sensualidade quase infantil”. Todos sabem que infância e sensualidade não existem juntas. Na página 71, ele elabora outra metáfora: "Agarrou-lhe depois a cabeça, como quem leva uma criança a comer o que está no prato, e trouxe-a junto ao seu pênis duro e tenso".

Crédito: José Sena Goulão, Lusa

No programa político do Chega é possível destacar diversas similaridades com o que foi proposto pelo bolsonarismo em 2018, vide a utilização do comunismo como um espantalho que ameaça “a tradição ancestral portuguesa e europeia”, além da teoria olavista sobre os riscos do marxismo cultural nas instituições. 

No programa eleitoral de 2024, com a promessa de privatizar companhias e atividades estratégicas do Estado, como no caso dos transportes públicos ou do Serviço Nacional de Saúde (SNS), o Chega também segue preceitos muito próximos aos do economista neoliberal Paulo Guedes, que assumiu o Ministério da Economia do Brasil durante a administração de Jair Bolsonaro. 

Ventura chegou a admitir um corte inicial de subsídios atribuídos aos trabalhadores e pensionistas pela Segurança Social como uma medida necessária para equilibrar as contas públicas durante os três primeiros anos de seu governo, mas para as empresas prometeu criar um fundo de apoio.

A BRASIL JÁ enviou no dia 29 de janeiro mensagem para os celulares das assessorias de imprensa do Chega e de André Ventura pedindo uma entrevista ou um comentário sobre o teor da reportagem, mas não obteve resposta até o fechamento da reportagem.

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