*ATENÇÃO: A reportagem a seguir reproduz relatos de abusos sofridos por mulheres.
“É uma cicatriz que nunca vai embora. Eu não tenho mais como ser a Marcela de antes, sem levar em consideração tudo o que eu passei, mas hoje eu me sinto pessoa, porque fui coisa por muito tempo.” De uma amizade escolar e um namoro que durou pouco mais de oito meses, em 2005, o casamento levou Marcela a aceitar as condições de ir morar longe da família, em uma pequena cidade de Minas Gerais.
Sob insistência do marido, ela deixou sua profissão e entrou de cabeça em uma relação na qual seu único espaço era o de objeto. “Eu era um enfeite que ele deslocava daqui para lá, que ele mandava se deitar ou ser mais arrumada. Eu era uma decoração.”
No romance “Tudo É Rio”, de Carla Madeira —um dos quatro títulos de ficção mais vendidos no Brasil em 2023, segundo a PublishNews— a prosa bem escrita, uma concatenação de eventos que descrevem o nascer e florescer do amor entre os protagonistas Dalva e Venâncio, nos reporta de algum modo às histórias que Jorge Amado contava nas décadas de 1950, 1960 e 1970, quando, apesar do protagonismo das personagens mulheres na história, o espaço destinado a elas não é muito distante da história que Marcela me contou sobre o início de seu casamento.
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Texto de Carla Madeira: “Vem ser minha. Dalva desligava o fogão. Tirava o ferro da tomada. Lavava o sabão das mãos. Largava a roupa sem estender. Deixava incompleto o esmalte nas unhas. Parava tudo. E ia”. Assim como o personagem Venâncio, o marido de Marcela precisava ser o centro da casa, era algo que, segundo ela, o definia como homem.
Quando qualquer situação da vida deslocava esse equilíbrio, o marido de Marcela simplesmente não aceitava.
No romance, Venâncio demonstrou seu incômodo jogando o próprio filho recém-nascido para longe e espancando a mulher. “Dalva oferecia o bico do peito para o menino. Os olhos de Venâncio pararam ali, sentiu uma dor de infidelidade, traição, a nuca esquentou num quase desmaio. O momento dela e do filho cegou Venâncio de uma absurda loucura. Ele arrancou o menino dos braços dela e jogou longe, bateu em Dalva, bateu, bateu. Espancou”.
A metáfora de rio que dá título ao livro se constrói especialmente nas águas que vão correndo e desmanchando o sofrimento e o trauma de Dalva. Enquanto ela decide permanecer em silêncio depois da agressão e da violência sofrida, tudo escorre, passa.
Longe da ficção, Marcela me confessa que mesmo depois de ter assinado os papeis do divórcio, em 2019, ainda tem medo de que o ex-marido exploda em algum rompante.
“É um processo que não acaba. Às vezes vejo uma moto perto de mim e penso que pode ser ele. Eu ainda tenho medo. Tenho medo das ameaças de processos, tenho medo dele ter um rompante. Tenho medo de que as perseguições voltem. Tenho medo de que o casamento atual dele acabe e que ele volte.”
Marcela e Flávio se casaram jovens, em 2005. No namoro, ela não notava indícios da violência que ele já demonstrara com outras mulheres. “Ele tratava muito mal a própria mãe, mas no início eu achava que aquilo não era comigo.”
Um dos primeiros indícios que ela ainda lembra como um alerta foi o quanto sua opinião contava pouco na construção da nova casa.
“Eu era dependente financeira dele e ele controlava o dinheiro que tínhamos para nossas despesas. Até ali, eu imaginava que ele estava poupando para comprarmos um sofá para nossa casa, porque vivíamos sem sofá e aí ele me apareceu um dia em casa com uma bicicleta.”
Flávio não se arrependeu da compra nem aceitava opinião contrária à decisão que tomou. Para ele, a bicicleta parecia muito útil, porque afinal ele gostava de fazer trilhas e na sua opinião o casal não precisava de um sofá: “A gente nem recebe visita, ele me disse”.
Seis meses depois do casamento, Marcela estava grávida, mas mesmo antes de Júlia nascer, ela já tinha se arrependido.
“Alguma coisa estava errada. Nós discutíamos muito. Ele não aceitava que eu trabalhasse. Queria que eu ficasse em casa e ficasse bonita. No final das discussões, jogava na minha cara que toda mulher quer isso. Era inaceitável eu não querer.”
Quando Júlia nasceu, as coisas pioraram porque o tempo e a atenção de Marcela se voltaram para a filha. Flávio reclamou muito, me disse Marcela. Ainda durante a gravidez, ele exigia que nada mudasse na relação dos dois.
Um dia, um dos funcionários da empresa para a qual ele trabalhava foi buscar uma estante que o casal iria se desfazer e ao contrário de deixar o rapaz subir as escadas para ajudá-lo a transportar o móvel, ele exigiu que Marcela grávida de sete meses fizesse aquele esforço. Ele não deixou que ninguém mais ajudasse.
“Eu deveria fazer e quando não conseguia descer aquele peso pelas escadas ele gritava. Gritou tanto que foi a primeira vez que um vizinho veio perguntar se tinha algo errado acontecendo”, lembrou. O episódio foi um dos iniciais.
A mãe de Marcela foi passar um período na casa do casal, para ajudar a filha nos cuidados da pequena Júlia, lembra ela. Flávio maltratou a sogra e fez de tudo para que retornasse a Brasília, o que inicialmente não funcionou. Ter mais pessoas ao redor faz com que os abusadores se sintam com menos controle.
A professora e pesquisadora Paula Queiroz Dutra afirmou à BRASIL JÁ que tirar as mulheres desse isolamento físico e psicológico que muitas vezes se encontram quando estão sofrendo a violência por parte de seus parceiros é um dos passos fundamentais para romper com esse ciclo.
“Entendi com o tempo que a primeira coisa que podemos fazer quando alguém nos conta um episódio ou uma história de violência é acolher. Quando uma mulher consegue contar a sua história é já um acesso, uma ruptura com esse isolamento. Nomear é pedir ajuda. Mesmo que ela não denuncie na hora. Mesmo que ela não consiga deixar aquele homem e sair daquela situação de imediato. Não podemos desistir dessa mulher.”
No Brasil, a Lei Maria da Penha é um escudo
Desde 2003, a legislação brasileira determina a notificação compulsória de casos de violência contra mulher em serviços de saúde públicos ou privados. Em 7 de agosto de 2006 foi sancionada a conhecida Lei Maria da Penha, em homenagem à farmacêutica, mãe de três filhos, sobrevivente de duas tentativas de assassinato e cárcere privado pelo marido.
Ela há mais de 18 anos combate a violência contra mulher e recentmente tem sido alvo de inúmeras fake news, justamente pelo poder simbólico de sua sobrevivência. Os mentirosos espalham a falsa notícia de que ela ficara paralisada por um assalto e não pelos tiros do marido.
A Lei Maria da Penha tornou obrigatória a investigação das denúncias de violência doméstica e a renúncia das vítimas só poderia ser feita diante de um juiz.
As agressões físicas, sexuais, psicológicas, patrimoniais e morais contra mulheres foram tipificadas como crime. Foram criados juizados especiais para julgar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher e se incluiu, como política pública, a construção de estruturas para atendimento das vítimas, como casas-abrigo, delegacias especiais, núcleos de defensoria pública, serviços de saúde.
Além disso, também se previu a criação de centros de educação e reabilitação para os agressores e uma previsão orçamentária do Estado para o cumprimento das medidas estabelecidas. A lei ampliou a pena de um para até três anos de prisão para os agressores, sem a possibilidade de pagamento pecuniário como multas ou cestas básicas.
Prisões preventivas e medidas protetivas se tornaram possíveis quando um juiz determina o risco de morte ou incolumidade das vítimas. O primeiro título da lei estabeleceu a responsabilidade social e do poder público para que todas as mulheres possam exercer plenamente seus direitos:
“Toda mulher, independentemente da classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”.
E segue: “Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados”.
Inúmeras denúncias
Marcela denunciou Flávio algumas vezes e em uma delas foi chamada para uma audiência depois de algum tempo. Daquele episódio ela guarda poucas lembranças. “Foi horrível. Eu ratifiquei todas as perseguições e agressões que ele fazia, mas no final eu disse que queria me retirar. Não sei mais o que aconteceu, mas eu só queria sair daquela sala e não ficar mais cara a cara com ele.”
Segundo ela, Flávio tinha bons advogados e lidava com aquelas situações dobrando as ameaças. A única vez que ele ficou preso por algumas horas foi quando depois de mais um episódio de agressão, uma vizinha chamou a polícia e na chegada dos policiais ele perdeu o controle.
Ele, afirma ela, foi preso por desacato. Horas depois ele tinha voltado para a frente da casa de Marcela, agora acompanhado da irmã, gritando ofensas e ameaçando retaliações, recorda ela. Foram as ameaças que fizeram Marcela aceitar se casar novamente com Flávio.
Eles haviam se divorciado quando Flávio passou um período em Angola, a trabalho. Mas em poucos meses depois ele voltou ao Brasil, e Marcela, percebendo que ele virara um perseguidor, decidiu voltar. “Ele virou um perseguidor. Ele seguia meu carro, ficava gritando na frente da minha casa. Usava nossa filha para me manipular.”
Durante o divórcio, Marcela recorda que tinha retomado a própria vida. Ela tinha voltado a dar aulas. Começou um mestrado. Conheceu outro rapaz e começou a namorar. Em pouco tempo, Marcela estava noiva desse segundo namorado e grávida dessa nova relação.
“O caldo engrossou de vez nessa época. Ele vinha na frente da casa dos meus pais e ficava gritando até eu sair para falar com ele. Ele me mandou foto com uma arma e fazia alusões aos perigos que nossa filha poderia correr em algum momento de fúria dele.”
Ele também perseguia o noivo de Marcela, xingava o rapaz em todos os lugares que o encontrava e continuava a proferir ameaças contra eles. Foi então que ela decidiu terminar aquele novo relacionamento para ver se o ex-marido se acalmava. “Aceitei o desejo dele para ter um pouco de paz.”
Uma calmaria que durou alguns meses, até o nascimento e os primeiros meses do novo bebê. Nos meses seguintes, a história de Marcela e Flávio piorou muito. As agressões físicas aumentaram. Segundo Marcela, Flávio desejava demonstrar controle e posse sobre ela de maneira mais veemente.
“Ele abusava de mim, inclusive sexualmente. Eu era obrigada a manter relações sexuais com ele na hora que ele quisesse. Quando me batia, ele insistia em fechar as mãos e bater muito na minha cabeça, assim dizia ele que não deixava marcas.”
Foram pelo menos seis anos de agressões, ameaças e chantagens, relatou. Júlia era sempre a peça-chave em uma série de manipulações que ele usava, quando Marcela pensava em se distanciar.
Até hoje, ela nunca entendeu por que o ex-marido queria manter uma relação falida, em que ele exercitava seu poder, mas não recebia afeto, carinho ou amor. “Ele era bonito, bem-sucedido e preferia ficar com um ser humano em frangalhos como eu era.”
A partir de 2017, com a filha mais velha e uma tentativa inconsciente de se livrar daquela situação, Marcela me disse que começou a tentar aos poucos, com algumas evasivas, não ficar sozinha com ele.
“Eu estava sempre inventando uma mentira. Até que ele começou a sair e foi conhecendo outras pessoas. E ele foi parando de me cobrar. Até que chegou o dia em que eu achei que dava para falar em terminar. Sem pedir o divórcio, porque talvez ele achasse que eu quisesse ficar com outra pessoa. Fui bem devagarinho. Tudo com jeitinho. E ele aceitou. Nunca mais voltamos. Foi ele quem não veio, porque se tivesse voltado com as ameaças e manipulações, eu não iria aguentar. Eu iria ceder.”
Apesar de ter sobrevivido às agressões e às ameaças e, em 2019, ter conseguido que Flávio assinasse novamente o divórcio, Marcela não se sente uma pessoa corajosa. “Eu consegui terminar dessa maneira. Não foi heroico. Não fui corajosa. Foi uma coisa que teve que ter um desinteresse da parte dele. Eu tinha medo.”
O que dizem os números no Brasil e em Portugal
Segundo os dados coletados pelo Atlas da Violência de 2024, no Brasil, as mulheres são a maioria das vítimas de violência. Entre 2021 e 2022, os índices mostraram que elas eram vítimas de 52% dos casos de violência física, 64,7% dos de violência psicológica e 86,7% dos de violência sexual.
Somente em 2022, 3 806 mulheres foram assassinadas no país e, ao contrário dos homens, a maioria delas sofre a violência nas suas próprias casas, por autores conhecidos. Enquanto a taxa de homicídios geral apresentou queda, os homicídios de mulheres não apresentaram melhoras.
De acordo com as notificações do Ministério da Saúde, o grupo mais afetado pela violência doméstica no Brasil em 2022 foram crianças e adolescentes, totalizando mais de 35 mil vítimas. Metade do total das vítimas em geral (49,9%) é mulher em idade reprodutiva, entre 15 e 39 anos.
A exemplo do Brasil, em Portugal os dados de violência doméstica também colocam as mulheres como a maioria das vítimas. No primeiro semestre de 2024, dez mulheres foram assassinadas em suas residências por agressores conhecidos. Em 2023, foram 17.
Segundo dados da Comissão Portuguesa para Cidadania e a Igualdade de Gênero, em 2021, a cada quatro vítimas de violência doméstica, três eram mulheres. Sendo o crime praticado em 80,2% dos casos por homens.
Desde 2014, com a entrada em vigor da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência de Gênero, Portugal reconhece a diferença de gênero como “socialmente construída [e] que constrange mulheres e homens a papéis e comportamentos específicos ou esperados, sendo que alguns destes estereótipos ou preconceitos podem contribuir para legitimar socialmente a violência contra as mulheres e meninas”.
Na perspectiva de tentar prevenir ou punir as agressões, foram presos no primeiro semestre de 2024, 2 675 agressores. Mais de 5 mil homens foram integrados a programas de reabilitação. Nesse mesmo período, 1 145 mulheres e mais de 1 mil crianças buscaram apoio na rede nacional de acolhimento às vítimas de violência doméstica.
O relato de Tatiana Salem Levy
A escritora Tatiana Salem Levy recentemente publicou um livro contando o assédio que sofreu na infância e adolescência pelo padrasto, o premiado cineasta brasileiro, Nelson Pereira dos Santos, falecido em 2018. Na publicação, Tatiana declarou que o primeiro episódio de assédio ocorreu quando ela tinha 10 anos.
Segundo seu relato, foi quando seu padrasto a desenhou com os seios a mostra, enquanto ela tomava sol na beira da piscina. Quando escritora tinha 17 anos, ele chegou embriagado e explicitamente avançou sobre ela. A situação perduraria pelos anos seguintes.
A autora relatou a dor de não ter contado para a mãe a violência que sofria. Helena Salem estava muito doente. A filha, preocupada, pedira conselhos a amigos e conhecidos sobre o que fazer, mas ouvia sempre que era melhor não afligir a mãe com essa dor.
O argumento era sempre o de que a mãe dela não teria tempo de se reconstruir. Aquele era o homem que ela amava e, já estando no final da vida, não valeria a pena falar. Helena morreu, e Tatiana não contou para a mãe sobre a violência do padrasto.
Sobrevivente ao assédio, Tatiana termina o livro “Melhor não Contar” relatando a experiência de abortar, aos 44 anos, em um país onde esse direito é garantido às mulheres.
Em clara comparação com a situação de ultraje brasileira, onde essa discussão regrediu ao ponto de o Congresso Nacional —composto em sua maioria por homens— discutir pena de prisão como as de homicidas para mulheres que abortassem depois das 22 semanas, o que corresponderia a uma detenção maior do que a de estupradores, por exemplo.
Uma menina estuprada, se abortasse, poderia ser detida por mais tempo que o seu algoz. Como em Portugal o aborto é legalizado, Tatiana pode narrar sua experiência às claras, sem a ameaça de ser penalizada ou presa pelo que fez.
Na sua opinião, no Brasil, as mulheres ainda não são donas do próprio corpo. Apesar do processo longo e difícil, o acolhimento legal e a execução desse direito nas estruturas públicas de saúde em Portugal determinaram a diferença no que a escritora entende como mínimo de controle sobre o próprio corpo.
O processo para que o aborto fosse legalizado em Portugal teve algumas etapas, algumas pelas quais o Brasil também já passou.
Uma década da Revolução dos Cravos, em 1984, foi aprovada uma lei que previa o aborto em situações de risco de morte ou “grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher”, além de comprovada doença e/ou malformação incurável do feto e, por fim, por motivos de gravidez resultado de violação, desde que nesses últimos dois casos, a gravidez fosse interrompida até a décima sexta semana.
Não observar os prazos previstos na lei, a mulher poderia ser punida com até três anos de prisão. No Brasil, a legislação que trata do tema tem mais de 80 anos, ainda assim, a interrupção da gravidez é permitida, sem limite de tempo, nos casos em que a gravidez ocorre por estupro, quando há risco à vida da gestante ou quando há diagnóstico de anencefalia do feto.
Em 1998, o Estado português convocou um plebiscito para a descriminalização do aborto que resultou em 50,9% dos votos contrários à medida. O resultado, porém, não teve aplicação válida, porque 68,06% dos eleitores se abstiveram ao decidir.
Passados nove anos, em fevereiro de 2007, a população foi novamente convocada a opinar sobre o assunto. Naquele ano, 2,2 milhões de portugueses foram favoráveis à medida, o que representava 59,25% dos votos válidos contra 40,47% dos votos válidos contrários a descriminalização do aborto.
Ainda assim, a abstenção superou novamente os 50% dos votos totais, e o plebiscito foi discutido pelo Parlamento da época. Em data simbólica, no dia 8 de março do mesmo ano, Portugal descriminalizou o aborto realizado até a décima semana de gestação.
Desde seu terceiro romance, “Paraíso”, publicado em 2014, o tema da violência contra as mulheres ganhou protagonismo nas obras da autora que vive em Portugal. Perguntei a Tatiana se isso era um projeto literário que ela estava construindo e porque abordar esse tema.
“Acho que é quase impossível escrever sobre mulheres e não falar de violência. Mas não tinha esse projeto, não pensei nisso. Eu acho que escrevo muito sobre as coisas que me afetam e que afetam as pessoas a minha volta e infelizmente ser mulher significa que em algum momento da vida vai sofrer algum tipo de violência.”
Em 2021, Tatiana lançou “Vista Chinesa”, relatando através da ficção o estupro sofrido por sua amiga, a diretora de televisão Joana Jabace. Nesta obra, a revelação da fonte por trás dos fatos que acompanharam a ficção viera a pedido da amiga.
Segundo Tatiana, sua amiga disse: “Eu não tenho vergonha do que aconteceu. Eu quero que você escreva que isso aconteceu de verdade —e que aconteceu comigo”.
Discurso de ódio contra mulheres em ascendente
Quando os números sobre a violência estampam os títulos de jornais com os índices exorbitantes e que insistem em não diminuir, muitos atores políticos e comentaristas explicam que, hoje, talvez o que haja seja o maior número de denúncias e que, apesar de tudo, a situação é grave, mas não está necessariamente piorando.
A pesquisadora Paula Queiroz Dutra discorda. Para ela, os números de feminicídio são a prova de que a questão não se trata de ser maior o número de denúncias, já que os assassinatos representam justamente a falha nos processos de prevenção, denúncia e justiça.
“O discurso de ódio contra mulheres aumentou e a voz e o espaço que as mulheres ocupam incomodam. O fato delas não aceitarem um papel objetificado gera agressividade, mas isso não tem a ver com elas. É preciso nos fortalecermos e é necessário gerar essa inquietação.”
Com palavras e um sorriso calmo, a pesquisadora se antecipa a uma das minhas perguntas, afirmando que “sim, às vezes é cansativo pensar que a luta das mulheres já dura séculos e a situação ainda é tão brutal. Mas eu aprendi que a luta feminista não necessariamente dará frutos para mim hoje, é algo que estou fazendo, plantando, lutando, para as meninas de amanhã”.