Nicoli Macedo ainda guarda os desenhos do filho em seu apartamento em Lisboa Crédito: Renato Velasco

Nicoli Macedo ainda guarda os desenhos do filho em seu apartamento em Lisboa Crédito: Renato Velasco

Exclusivo

Como uma convenção internacional é usada para tirar filhos de suas mães

Genitores europeus recorrem à Convenção de Haia para conseguir assumir a tutela das crianças —e conseguem.

01/10/2024 às 09:35 | 8 min de leitura
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Adriana Botelho, de 50 anos, diz lembrar como se fosse hoje o dia em que sua filha, então com 7 anos, foi retirada de sua casa, em Salvador, pela Polícia Federal em dezembro de 2011, numa ação a pedido do pai da garota. 

O homem, um português, alegara que a mulher tirara sua filha de Portugal sem o seu consentimento. A primeira instância da Justiça brasileira concordou com os argumentos do progenitor, que recorreu à Convenção de Haia para obter a guarda da filha. 

A decisão, lembra Adriana, fora expedida às 7h30 e, segundo ela, em menos de três horas, agentes da Polícia Federal estavam na sua porta para buscar a menina e entregá-la ao consulado português. “Entrei na viatura da PF abraçada à minha filha. Chegando lá, tive trinta minutos para entregar minha filha ao cônsul”, narrou. 

Adriana (à esquerda) em aniversário da filha (centro), hoje com 19 anos. Crédito: Arquivo Pessoal

Adriana contou que o pai da menina, que a aguardava no endereço, embarcou no mesmo dia com a criança de volta para Portugal. No dia seguinte, a instância imediatamente superior da Justiça brasileira ordenou a permanência da criança no Brasil, mas era tarde para a mãe. 

Ao contrário da primeira decisão, o juiz levou em consideração os argumentos de Adriana, que disse ter fugido da violência doméstica de que era vítima e, sem amparo, decidiu retornar ao seu país, levando junto a filha. 

Atualmente com 19 anos, a menina mora em Portugal e não vê a mãe. Para a jovem, disse Adriana, ela fora abandonada pela genitora.

O que a Convenção de Haia tem a ver com problema?

O Brasil é signatário desde 1º de janeiro de 2000 da Convenção de Haia, um documento internacional assinado 20 anos antes por 103 países, com o objetivo de evitar o deslocamento de crianças do país onde habitualmente residem ou a retenção ilegal de menores de 16 anos no exterior. 

Quando o protocolo fora discutido, nos anos 1980, a maioria dos casos de subtração de crianças era cometida pelos progenitores homens, descontentes com a atribuição da guarda às mães. Não era incomum, à época, que homens raptassem os filhos —ora para punir a ex-mulher ora porque se acreditava movido por algum sentimento de injustiça— e os levavam para o exterior. 

Quarenta anos depois da concepção do instrumento, são as mulheres, antes protegidas, as principais vítimas de decisões que, não raro, privilegiam a paternidade dos homens em detrimento da segurança das mães e das próprias crianças. 

Não é que haja uma conspiração global para a retirada de filhos de suas mães, mas a forma como os dois primeiros artigos da convenção foram redigidos —e, como se disse, a urgência de se devolver a criança ao lar— faz com que os juízes, de modo geral, tratem como secundários os motivos que levaram a mulher a abandonar a casa e levar consigo o filho ou a filha. 

Isso se tornou habitual, por exemplo, em episódios de violência doméstica, como o alegado caso de Adriana, citada no começo da reportagem. 

O primeiro artigo da Convenção de Haia é categórico ao afirmar que seu objetivo é “assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas” de suas residências; o segundo afirma que os países signatários do documento precisam adotar “procedimentos de urgência”. 

Ou seja, o documento começa dando à urgência o tom com que as decisões judiciais precisam ser tomadas e os procedimentos que devem ser adotados.

Os números que expõem a violência

Um relatório da ONG Revibra, que atua em quinze países e que trabalha com mães na mesma situação que a de Adriana, mostra que, dos 278 casos ocorridos entre novembro de 2019 a dezembro de 2022, 277 são de mães brasileiras denunciadas por sequestro internacional, tendo 84% delas relatado, com provas, violência doméstica, atribuindo a agressões físicas e/ou psicológicas o fator decisivo para que se mudassem com o filho para outro país. 

Dos relatos de violência doméstica, 36,5% dos casos, as crianças e os adolescentes levados também são vítimas diretas de abusos psicológicos, físicos e/ou sexuais. Segundo afirma a organização, em episódios em que o retorno ocorreu por decisão da Justiça, há relatos de que crianças voltaram a morar com o agressor e perderam o contato com a mãe. 

É o que ocorreu segundo Adriana, que nas decisões seguintes acabou sendo considerada uma sequestradora de menor. 

A advogada Isabel Aguiar afirma que a Convenção de Haia é útil e deve ser usada para os casos reais de rapto parental, no entanto, a advogada aponta para o perigo de a convenção ser usada como instrumento de perseguição das mães. 

“Em regra, é contra as mães que ela é utilizada. Nos casos que eu acompanhei, [a Convenção de] Haia foi acionada pelo progenitor como vingança.”

Outra personagem ouvida pela reportagem, Nicoli Macedo, de 33 anos, perdeu a guarda do filho, hoje com 4 anos, após deixar a casa onde vivia com a criança, então com dez meses, na Espanha. Ela vive em Lisboa, onde é professora universitária. 

“Depois de um tempo, tive que desmontar o quarto [do bebê] porque era sofrido demais ver as coisinhas dele.” 

Nicoli Macedo ainda guarda os desenhos do filho em seu apartamento em Lisboa Crédito: Renato Velasco.

Segundo Nicoli, o pai da criança teve mandato político e se mantém influente politicamente em Lucena, a setenta quilômetros de Córdoba, na Espanha, e atribui aos contatos políticos dele a decisão da Justiça de lhe tirar a guarda da criança, já que sua vida estava estabelecida em Lisboa e só teve o bebê na cidade espanhola para que o filho nascesse próximo do pai. d

Com dez meses, na teoria, não fazia sentido a aplicação da Convenção de Haia, cujo objetivo é garantir à criança a manutenção do que entende ser seu lar. O Ministério Público português concorda que não cabia tirar a criança de Portugal. O bebê sequer tinha um ano de vida quando Nicoli teve o filho retirado dela.

Ela e o pai da criança começaram a se relacionar, em 2017, quando Nicoli estava com 27 anos, e ele, com 59. À época, o plano da mulher era entrar num programa de intercâmbio entre universidades e estudar na Bulgária, mas o agora ex a convenceu a se matricular em uma instituição de Lucena. 

“Ele era muito agradável, gentil”, lembra ela. Ainda assim, Nicoli disse que não foi morar com ele, preferindo viver na moradia para estudantes da universidade. Segundo ela, o homem passou, então, a demonstrar ciúmes e se tornou controlador. O casal ficou junto por mais alguns meses até que terminaram. 

Nicoli contou ter de retornar para Lisboa, onde conseguiu uma bolsa de doutorado. Foi quando se descobriu grávida e, com a gestação, houve uma reaproximação do casal. Com oito meses de gravidez, ela decidiu ter o filho na Espanha, ao lado do pai da criança. 

Nicoli Macedo prepara a mochila do filho Crédito: Renato Velasco

Mas a vida, relembra, ficou ruim, “um inferno”, pouco tempo depois, sofrendo, segundo ela, até tortura psicológica. A criança nasceu em fevereiro de 2020, no início da pandemia de Covid. Durante as restrições, segundo Nicoli, o pai do menino não respeitava as regras e expunha os filhos ao risco de contaminação —também havia outras três crianças de outro casamento vivendo na casa. 

Mas, meses depois, diante do que entendia ser um risco ao filho e das violências que disse ter sofrido, principalmente quando, de acordo com ela, o homem voltava bêbado da rua, ela decidiu antecipar o retorno a Lisboa. 

“Ele disse que eu não sairia de lá com o meu filho e, do dia para noite, passei a viver em cárcere privado”, narrou, lembrando que ele se deixou flagrar com armas em casa. A história narrada —e documentada pela mulher— piora.

Eventualmente, Nicoli Macedo conseguiu arrancar dele o compromisso de assinar a guarda compartilhada —e ela retornaria a Lisboa. No dia da assinatura dos documentos, no entanto, ela afirma que o ex pediu para que pudesse passear com o filho. A mulher deixou. 

“Fui burra”, disse, afirmando que foram “horas de pânico tentando encontrá-los”. Muitas ligações depois, Nicoli disse ter descoberto que o homem estava na polícia, onde fazia uma falsa comunicação de sequestro do menino, atribuindo a ela o crime. Ela foi até lá, e o delegado ordenou a prisão do homem. 

Segundo Nicoli, a decisão do delegado se baseou no fato de o homem ter confessado que, na verdade, fora ele o sequestrador, deixando o filho na casa de um amigo para ir até a delegacia. Nicoli disse que o bebê foi encontrado sem comida e sem os cuidados básicos de um recém-nascido. 

Com o pai do bebê preso (por seu sequestro, diga-se), ela voltou com a criança para Lisboa. Na cidade, ela trabalhava e tinha residência fixa, mantendo sozinha o menino. Dias depois, Nicoli disse ter sido surpreendida com a polícia à sua porta. 

O pai do menino e uma assistente social estavam acompanhados de policiais. Novamente, a Convenção de Haia foi usada como instrumento para alegar um sequestro de menor sem se observar as condições em que o menino fora levado. Sem ter o que fazer naquele momento, “fui obrigada a entregar meu filho”.

Ministério Público em Portugal foi favorável à mãe

Em 2021, o Ministério Público português afirmou que as provas produzidas por Nicoli não deixavam dúvidas de que “a residência do menor era Portugal”. No documento, o promotor Júlio de Pina Martins afirmou que “o superior interesse da criança exigia e exige que o menor não seja separado de sua mãe em idade tão tenra.” 

A Justiça espanhola, porém, manteve o menino com pai, embora ela tenha reconquistado o direito de visitar o filho, podendo fazê-lo uma vez por mês. No dia em que a BRASIL JÁ esteve na casa dela, Nicoli se preparava para uma das visitas que faz mensalmente ao filho. 

“Ele adora essa malinha”, disse, apontando para a bolsa onde ela guarda os brinquedos que leva para o momento de diversão entre mãe e filho. Ela, porém, se ressente de não poder estar com a criança na Páscoa, no Dia das Crianças ou no Natal. 

“Ele não tem a mãe no álbum de fotos dos seus três primeiros aniversários”, disse ela com lágrimas nos olhos. No último 3 de julho, a Justiça espanhola definiu que não irá decidir baseada na Convenção de Haia, de que o país também é signatário, se haverá ou não o retorno do filho de Nicoli a Portugal. 

Segundo a juíza, não há o que executar no processo, ignorando o entendimento do Ministério Público português de que a criança nunca deveria ter sido retirada de Portugal. Em junho, a criança se negou pela primeira vez a ficar com Nicoli. O menino estranhou a mãe. 

Com 4 anos, segundo a mulher, a criança disse que ela o havia sequestrado. Nicoli atribui o estranhamento do filho a ideias do pai, porque avalia que uma criança nesta idade não compreende o que é ou não sequestro. 

“Parte da família [do progenitor do menino] me tratava como se eu fosse uma prostituta brasileira que teve um filho porque ele é um grande idiota ou um pobre coitado.” Ela ainda luta para recuperar a guarda do filho.

O que informou o Ministério da Justiça no Brasil

A Coordenação-Geral de Subtração e Adoção Internacional de Crianças e Adolescentes do Ministério da Justiça do Brasil informou à BRASIL JÁ que, dos 191 processos que tramitam em 2024, 74 já foram encerrados, 23 deles por decisão judicial, dezesseis por conciliação, mediação ou retorno voluntário, e 35 por outros motivos. 

Entre Brasil e Portugal, o órgão afirmou que até a metade do ano eram 27 os processos ainda em tramitação, onze desses casos ativos —que é quando a criança é enviada do Brasil para exterior exterior— e dezesseis passivos —quando a criança é enviada do exterior para o Brasil. 

Portugal é o segundo país do ranking com mais retorno de crianças brasileiras, ficando atrás dos Estados Unidos. A advogada da ONG Revibra, Juliana Wahlgren, lamentou à reportagem o fato de que, segundo ela, não haja esforços para alinhar a aplicação da Convenção de Haia ao novo contexto global. 

Nos anos 1980, o protocolo fora criado para a proteção das mães e de seus filhos; agora, são as mães e as próprias crianças as vítimas de uma aplicação sem muita reflexão sobre o processo. 

“É como se a gente tivesse dois sistemas. Um para quem mora no Brasil, quando a violência acontece lá; e outro para quem mora fora do Brasil, com a violência principal não acontecendo lá. Nesse sentido, parece ser uma categorização de vítimas, de quem tem mais ou menos direitos.” 

Apesar de o documento só poder ser modificado se houver um consenso entre todos os países signatários, a advogada e outros especialistas no tema acreditam ser possível que o Brasil, pelo menos, siga o ordenamento jurídico local. 

No Uruguai, por exemplo, a Justiça como regra considera a violência doméstica um fator decisivo na hora de decidir se o menor será ou não repatriado. Não seria muito difícil para o Brasil seguir os passos do país vizinho. 

O Conselho Nacional de Justiça criou, em 2021, um protocolo para que o judiciário brasileiro considere a Lei Maria da Penha, que versa sobre violência doméstica, ao analisar casos de subtração de menores. 

Não resolveria, por exemplo, o caso de Nicoli, que está em Portugal e cuja ação será julgada na Espanha. Mas fosse o caso de Adriana Botelho —onze anos antes— a história poderia ter sido outra.

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