Na última lei orçamentária aprovada em 29 de dezembro último pelo Parlamento italiano —com 200 votos favoráveis e 112 contrários—, a figura da mulher enquanto mãe foi ressaltada pela primeira-ministra Giorgia Meloni.
Segundo ela, o novo orçamento instituía “medidas significativas na valorização da contribuição que mulheres com dois ou mais filhos dão para a sociedade, neste país que tem uma necessidade desesperada de inverter os dados de sua demografia”.
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Uma primeira contradição aparece, porém, no aumento de 5% a 10% de imposto IVA (imposto sobre valor agregado) de produtos da primeira infância, como as fraldas, aumentando as despesas familiares.
Junto a esses produtos, também os absorventes tiveram sua alíquota IVA dobrada, em contraposição a diminuição de taxas para a realização de cirurgias estéticas e na venda de integradores alimentares.
Além disso, os benefícios fiscais são concedidos para mulheres que são mães e já conseguiram se inserir no mercado de trabalho formal.
As maiores reduções são obtidas para as mulheres com dois ou mais filhos e que possuam um contrato de trabalho a tempo indeterminado, excluindo das atividades qualquer relação com o trabalho doméstico.
O limite da renda familiar imposto para a obtenção das isenções é de até 40 mil euros anuais, a maioria das famílias com dependentes menores de idade apresenta uma renda anual de até 12 mil euros.
Para a pesquisadora brasileira do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, Rosimeire Barboza da Silva, a estratégia do governo nesse caso é fragmentar o discurso e dividir o número de beneficiários.
Primeiro, entre a figura da mulher e da mãe, depois silenciar o peso dessa figura central que o trabalho doméstico ainda exerce na economia italiana, e por fim dividir entre as mães trabalhadores com contrato regular, daquelas que têm um trabalho precário ou temporário, das que nem sequer conseguiram ingressar no mercado de trabalho.
“Cria uma hierarquia e uma competição”, conclui Barboza da Silva.
Certidões de nascimento com duas mães anuladas
Ainda no quesito mãe, nem todos os exercícios de maternidade são reconhecidos pela lei Italiana e isentos de um ataque do atual governo.
Em janeiro de 2023, no início de seu mandato, o ministro do Interior, Matteo Piantedosi fez circular um pedido a prefeitos e administradores locais que parassem com os processos de transcrição das certidões de nascimento de filhos de casais do mesmo sexo.
Menos de cinco meses depois, o Ministério Público da cidade de Padova impugnou 33 certidões que tinham o registro das duas mães como progenitores responsáveis com iguais direitos, requerendo aos magistrados o cancelamento do registro das mães não-biológicas.
A maior surpresa não foi apenas o impedimento do registro das duas mães, mas a anulação retroativa de certidões de nascimento registradas seis anos atrás.
Padova foi uma das cidades que mais tinha oferecido apoio aos casais do mesmo sexo com filhos, mas em junho de 2023, as famílias foram avisadas por uma correspondência do governo que a partir daquela data apenas a mãe biológica teria direitos e deveres garantidos sobre o menor.
As 33 famílias entraram com recurso. Em Milão, em 6 de fevereiro de 2024, o Tribunal acolheu os argumentos do Ministério Público que defendia o direito dessas famílias, que mesmo com a circular de Piantedosi, conseguiram emitir com o aval do município a certidão de nascimento de seus filhos. Atualmente esses casos também foram anulados e nos documentos das crianças conta apenas a mãe biológica.
Parentalidade é excluída
No caso de dois pais, o problema é ainda mais grave, porque a Itália proíbe a gestação de filhos por terceiros. O caminho indicado para essas famílias é entrar com pedido de adoção da criança. A ausência de uma normativa italiana que regulamente a questão é, para a Corte de Milão, o maior problema:
“A Corte reconhece que a matéria requer a intervenção do Legislador, único sujeito capaz de operar um articulado desenho normativo idôneo para declinar de modo correto os direitos dos sujeitos envolvidos”.
Em 2016, quando o país era governado por Matteo Renzi em uma coalizão de centro-esquerda, o Parlamento colocou em votação a possibilidade do casamento entre casais do mesmo sexo e todos os direitos que a medida poder criar.
Foi um período de grande divisão na esquerda e, ao final, o quadro político decide que o país ainda não estava pronto para oferecer medidas igualitárias a casais heterossexuais e homossexuais.
Foi aprovada apenas a união civil para os casais do mesmo sexo e excluída a questão da parentalidade. A ausência de uma normativa que a esquerda propôs, mas abandonou, fez com que em poucos anos a questão fosse completamente dominada pelos programas dos partidos de direita.
Senado italiano rejeitou projeto de lei europeu
Também em 2023, o Senado rejeitou o projeto de lei europeu que propunha a criação de um certificado de nascimento e reconhecimento europeu para todos os filhos nascidos e cidadãos dos países UE, de parentalidade homo ou heterossexual.
A Comissão do Senado que trata das políticas europeias emitiu um parecer negativo a proposta e o vice-primeiro-ministro, líder da Liga Norte, definiu a decisão nos termos: “o amor é livre e sacrosanto. A criança precisa de uma mamãe e um papai, ponto final”.
O 57º relatório publicado pelo Centro de Estudos Sociais e Investimentos (Censis), órgão independente que desde 1964 apresenta um retrato da sociedade italiana, registrou a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo por 65,6% dos entrevistados e o apoio a adoção de filhos por esses casais na casa dos 54,3%.
Os números do Censis apontam para uma Itália composta de 52,4% por famílias ditas tradicionais, compostas por um casal hétero, com ou sem filhos. Em 2009, esse número era de 60%. Apenas 32,2% das famílias formada por este modelo de homem e mulher, exclusivamente, têm filhos.
Segue a tendencia de queda para o número de casamentos realizados. Em 2008 foram 246 613; em 2021, os registros apontaram 180 416. Atualmente, 11,4% das famílias são formadas por casais que não estão unidos sob nenhuma convenção.
Os estrangeiros compõem 9,8% dos núcleos familiares e 7% das famílias residentes na Itália são compostas apenas por estrangeiros.