Maria Conceição Matos

Maria Conceição Matos

Maria Conceição Matos: '25 de Abril foi o dia mais feliz da minha vida!'

Ção, como é conhecida, conheceu de perto a brutalidade do salazarismo e sofre ao lembrar das crianças presas e torturadas

23/04/2024 às 19:16

Maria da Conceição Matos tem 88 anos e é uma resistente antifascista. Também milita há mais de sessenta anos no Partido Comunista Português, o PCP. Foi presa duas vezes ao longo da ditadura salazarista. Como mulher, sofreu com a brutalidade da repressão, perseguição e violência (física e psicológica) do regime que durou 48 anos, o mais longo de toda a Europa. 

É conhecida como Ção e fez da luta a sua vida. Casou-se por procuração com Domingos Abrantes, também um militante do PCP, quando ele estava preso. Foi torturada por exigir democracia e direitos humanos ao seu país. 

Hoje, diz que o que mais a faz sofrer é se lembrar das crianças que foram presas e torturadas com as mães. “Uma mulher estava grávida, eles lhe batiam na barriga, diziam que era para ajudar no parto. E ela abortou”, revelou, emocionando-se, mesmo após tanto tempo. 

Ção até hoje conta o lado da história de Portugal que não se pode esquecer. Frequentemente, visita escolas e associações com imagens e documentos para mostrar às crianças e aos jovens a memória de um país em que as mulheres precisavam pedir autorização para sair sem o marido, onde as pessoas eram perseguidas, presas, torturadas. Não havia liberdade. 

“Eu digo sempre nas escolas: espero que nunca passem por isso. Tem que defender a liberdade, lutar pela liberdade que foi conquistada com muitos sacrifícios, com muitas mortes. Eu estou aqui para contar a história, mas houve muita gente que morreu”, disse. 

Para entender melhor a importância da mulher e da figura histórica que Conceição Matos representa para Portugal, a BRASIL JÁ foi até a sede do Partido Comunista Português, em Lisboa, para uma conversa.

Onde você estava no dia 25 de Abril?

O Domingos [Abrantes, companheiro da Conceição] tinha saído da prisão alguns meses antes e o partido decidiu que íamos para a clandestinidade. Nós estivemos nessa situação por muito tempo antes das prisões, naquela altura, no interior, onde fomos presos. Depois que saímos da prisão, fomos para a clandestinidade em Paris. Neste dia, eu estava em Paris, e o Domingos tinha ido a Bruxelas. Tínhamos um encontro por lá e, às tantas, quando fui ter com a pessoa — um jovem estudante da advocacia que tinha fugido da guerra colonia l—, ele me diz "Maria, Maria", assim, de longe. 

Eu era Maria para toda a gente, mas Maria há um monte delas. Foi um sinal para não saberem quem eu era. E ele dizia: "Maria, Maria, caiu o Marcelo, caiu o Marcelo". E eu cheguei ao pé dele e disse: “O quê? Não me digas que é como o outro, também caiu da cadeira?". E ele: "Não, é uma revolução!". Então eu disse: “Vamos embora, vou ver se tem alguma coisa na televisão para quando o Domingos chegar à noite poder ver”. E foi assim que eu soube. À noite, contei ao Domingos.

Você entendeu de cara o que estava acontecendo?

Foi uma alegria, mas havia dúvidas. Eu pensava assim, por um lado havia o [Antônio] Spínola, que eu sabia que era extrema-direita, mas, ao mesmo tempo, começavam a cantar o Zeca Afonso, a “Grândola Vila Morena”, e eu pensava: “Como é que é possível?” Fiquei um bocado embaralhada, mas depois fui para casa e comecei a assistir às coisas, até que o dia que eu vi os presos saí- rem, só assim que eu me convenci, quando eu os vi saírem.

E o que sentiu, Ção? 

O partido decidiu que voltaríamos para Portugal com o Álvaro Cunhal [histórico secretário-geral do PCP até 1992 e que enfrentou o exílio durante o período salazarista em Portugal]. Com o Álvaro, chegamos os três [Conceição Matos, Domingos Abrantes e Álvaro Cunhal], e então viemos na véspera do 1º de maio de 1974. Aquilo foi uma alegria. Quando nós chegamos e vimos aquela gente no aeroporto, milhares de pessoas, à espera do Álvaro —não era de nós, ninguém sabia onde nós estávamos. Uma alegria! Nem tenho palavras para dizer. 

Às tantas vejo minha cunhada, meu irmão, muita gente do Barreiro [na margem sul do rio Tejo]. Quando eu vi minha cunhada, ela não esperava nada, tinha ido ver o Álvaro, e começou a chorar, quase não conseguia respirar. Que alegria! E de modo que depois se agarrou a mim a chorar. Depois foi o 1º de maio. É claro que os presos políticos não saíram no 25 de Abril. Só saíram dois dias depois. Foi preciso o povo. O povo quem libertou os presos. O povo foi para a porta do Forte de Peniche, imensa gente. Caxias a mesma coisa. Aí, começou a se pressionar pela libertação dos presos.

25 de Abril, Assembleia da República.

O que foi o 25 de Abril?

Alegria! Foi o dia mais feliz da minha vida! Ver a liberdade, as pessoas sem ter medo de falar e ser interceptadas. Porque havia muita gente, pessoas que ouviam para depois contar. Então foi o dia da liberdade, foi o dia mais feliz. Já não há prisões, aquela gente a emigrar. Quer dizer, havia uma perspectiva da pessoa trabalhar e ganhar o suficiente, não havia miséria, pobreza, porque esse país era o país da miséria. Uma pobreza extrema! Na escola, todos os meninos ficavam descalços. Só o professor calçava sapatos. Era assim que se vivia, isso era uma escola. Parece que são miseráveis, pobrezinhos, todos descalços.
 
Quanto tempo perduraram as suas prisões?

A primeira durou cerca de dois anos, porque eu também fui julgada no Montijo [em que residia na época com Domingos. Ambos foram presos pela Pide* por identidade falsa] porque estava na clandestinidade. Na segunda é que tive só dois meses e meio, graças a mim, por não ter delatado. Eu não só defendia a mim, como também os camaradas.

E como é que foi, neste contexto, o seu casamento com o Domingos?

Não deixaram tirar fotografia. As fotografias existentes são nossas, de fora, sem o noivo. Não deixaram nem sequer isso. Ainda por cima fomos obrigados a casar. Não havia direitos de visita. Então, eles o que que fizeram? O tempo que passamos presos ficamos cinco anos sem nos vermos. O Domingos esteve muito tempo preso. Mas nesses cinco anos não deixavam nem visitar, nem escrever, imagina! Tivemos muitos anos sem nos ver, mas eu ia lá, protestar, queria vê-lo e até para levar coisas aos presos. Curioso é que havia uma solidariedade muito grande entre os presos.

Como era a solidariedade entre os presos?

Era espetacular. Quando nós íamos à visita, levávamos um saco aos presos. Eu levava para o Domingos, mas chegava lá e via quem é que estava lá de visita. E via que, por exemplo, aquela gente do Alentejo não tinham os acessos ao que nós, de Lisboa, tínhamos. Não havia muitas visitas para eles. Eu via que não estava ninguém para um determinado piso, que não era o piso do Domingos. Então, o que é que eu fazia? Ao invés de nomear para Domingos, punha “Dinis Miranda, cadeia do Forte de Peniche”, e entregava. E muitas vezes eles [os guardas] protestavam, mas eu dizia: "Foi a família que me mandou". O saco, então, ia para aquele pavilhão que tinha mais dificuldades. Eles repartiam entre eles.

Conceição, os seus pais também foram militantes?

Não eram. Mas havia muita miséria ali naquele Barreiro. Meu pai era operário e só trabalhava. Ganhava para sete pessoas. As casas não tinham nem água, nem eletricidade. Para minha mãe lavar a roupa, tinha que lavar para sete pessoas e ir buscar água longe, em uma torneira pública. Meu pai trabalhava de turno e, na maior parte das vezes, era o turno da noite, porque era uma forma de ganhar qualquer coisa a mais. Comíamos sopa, água, batata e depois umas couves do quintal. Eu fui trabalhar com dez anos, aprendi costura para fazer vestidinhos com a minha mãe. Depois fui para uma fábrica de cortiça, em seguida para uma fábrica de pirulito [uma bebida gasosa].

Quais valores do 25 de Abril você acha que continuam?

Muitos. Quando uma pessoa começa a pensar no futuro dos jovens, eu digo sempre nas escolas: "Espero que nunca passem por isso, tem que defender a liberdade, lutar pela liberdade que foi conquistada com muitos sacrifícios, com muitas mortes. Eu estou aqui para contar a história, mas houve muita gente que morreu. Catarina Eufémia [figura emblemática na luta dos trabalhadores rurais do Alentejo assassinada em 1954 pelo tenente João Tomaz Carrajola da Guarda Nacional Republicana] foi morta a tiros, Dias Coelho [responsável pelo setor intelectual do PCP assassinado pela Pide em 1961 no bairro de Alcântara, em Lisboa] foi morto a tiros". 

Eu fui torturada, muito torturada, é verdade, mas estou aqui. Mas quantas mães, quantas crianças, eles torturaram. Por exemplo, uma mulher estava grávida, eles lhe batiam na barriga e diziam que era para ajudar no parto. E ela abortou. Isso é terrível! Às vezes me perguntam: “O que lhe custou mais, as torturas físicas ou as psicológicas?”. E eu costumo dizer que foram as humilhações. Doem muito mais. Tiram a nossa dignidade como mulheres.

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