Crédito: Agência Lusa

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Moçambique vai às ruas

Mobilizados desde outubro, manifestantes reclamam do resultado das eleições autárquicas e creem em mudanças nas eleições deste ano

25/01/2024 às 19:09 | 7 min de leitura
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Esmeralda Gonçalves João de Sousa promete resistir. No dia 27 de outubro do ano passado, as cidades de Nampula e Nacala experimentaram o momento de maior tensão política vivido nos últimos anos em Moçambique. Em meio à escalada de manifestações populares, duas pessoas foram mortas pela polícia, que tentava impedir o avanço dos protestos nas ruas do país. 

Duas crianças também morreram na ação policial. Imagens de homens armados com metralhadoras — policiais à paisana — atirando para o alto e contra os manifestantes renderam notas de repúdio de ONGs de direitos humanos pelo mundo e levou (ainda que semanas depois) a um pedido de desculpas do chefe da polícia moçambicana, algo pouco comum não apenas lá. Naquele dia, Esmeralda era um dos presentes nos levantes populares e foi vítima da violenta repressão do Estado.

Professora de 33 anos de Maputo, ela foi detida e ficou cinco dias desaparecida. Segundo afirmou à BRASIL JÁ, na cadeia não pôde falar com advogado, avisar sua família da detenção e sofreu privação de comida. A manifestante diz ter sofrido “pressão psicológica” para abandonar as manifestações e aderir ao partido do governo. Solta, voltou às ruas para protestar.

Esmeralda é uma entre as milhares de pessoas que tomaram o espaço público de Moçambique nos últimos três meses em passeatas contra o resultado das eleições autárquicas de 11 de outubro. Ela afirma estar inconformada com as denúncias de fraude, com o viés autoritário das repressões aos protestos e com a pobreza: “O gover- no frustra os sonhos dos mais de 30 milhões de moçambicanos, porque deixa jovens atirados ao desemprego, à mendicidade e à opressão”.

Policiais armados à paisana tentam segurar as manifestações Crédito: Centro para Democracia e Direitos Humanos

Sua esperança, diz, é pressionar por mudança no poder. E por isso quer resistir. Ela é militante do principal partido de oposição, a Renamo (Resistência Nacional Moçambicana), que travou contra a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) uma guerra civil que durou 16 anos.

O histórico de combates armados e o rastro de milhares de mortos, além do atraso em quase duas décadas para a implementação efetiva de políticas públicas e democráticas no país, têm preocupado moçambicanos e observadores internacionais. E o motivo é que integrantes da Renamo, embora não oficialmente, ameaçam voltar a pegar em armas para pôr fim ao que dizem ser uma conspiração envolvendo justiça, comitê eleitoral e a polícia para beneficiar a Frelimo, partido que ocupa o comando do governo central desde a independência do país, há 49 anos, e hoje é liderado pelo presidente Filipe Nyusi.

O partido de Nyusi reivindicou ter vencido as eleições em 64 das 65 autarquias. O resultado significaria que a oposição (a Renamo e o Movimento Democrático de Moçambique) havia sido varrida na disputa eleitoral e que, provavelmente, teria poucas chances no pleito de outubro deste ano.

A despeito das denúncias de observadores internos e externos e de concordar parcialmente que houve “erros” na contagem de 78 mil votos em Maputo e em Matola, o Conselho Constitucional (CC) do país referendou dias depois a vitória da Frelimo. Deu, porém, uma vitória menor: em vez de considerar uma vitória sobre 64 autarquias, o partido do presidente venceu em 56 autarquias. O conselho considerou a Renamo vitoriosa em quatro cidades e o Movimento Democrático de Moçambique em uma.

Esmeralda Gonçalves João de Sousa promete resistir Crédito: Lucas Menezes, BRASIL JÁ

Também determinou que a Comissão Nacional de Eleições realizasse um novo pleito em outras quatro regiões. Mas não adiantou. Depois de contados os votos, em 30 de dezembro, o Conselho Constitucional confirmou a vitória da Frelimo, que, a partir de agora, governará 60 autarquias. A Renamo rejeita o resultado. Uma das lideranças partidárias, Clementina Bomba, declarou que a decisão ameaça a conciliação nacional em referência aos sucessivos acordos de paz.

A tensão que tomou as ruas do país é turbinada pela deterioração social. Em Moçambique, o salário-mínimo não supera os 125 euros mensais, situação agravada pela oferta precária dos serviços básicos. É o mesmo quadro na saúde, na educação, na assistência social e em outros setores do Estado.

Enquanto isso, o custo de vida aumenta e a população vê multiplicar as denúncias de corrupção ligadas à Frelimo. Dados do Instituto Nacional de Estatísticas indicam que em 2022 quase metade (48%) da população moçambicana vivia em situação de pobreza extrema, sobrevivendo com menos de 1 dólar ao dia. E, 235,9 mil consumiam menos de uma refeição por dia. São indicadores insuportáveis tendo em conta que 62,4% da população vive em zonas rurais.

César Augusto, um eletricista de 25 anos, mora em Magoanine A, em Ma- puto. Apesar do pedido dos pais para que não aderisse às manifestações contra o resultado das eleições, ele foi para as ruas, porque disse considerar que o governo capturou as instituições públicas.

Para o jovem, é um oportunidade ajudar a pressionar o Estado e combater o alto custo de vida e a corrupção, que classificou como “endêmica”. À BRASIL JÁ, ele se definiu como um “sonhador e ativista do bem-estar social” e disse confiar na mudança de governo este ano.

César Augusto, um jovem eletricista de 25 anos, quer se manter nas ruas Crédito: Lucas Menezes, BRASIL JÁ

“Como é que um jovem recém-formado vai conseguir dinheiro para subornar um servidor público e entrar para um es- tágio sem uma fonte de renda?”, diz, citando na ponta da língua o índice de desemprego entre jovens: “Trinta por cento”. A esperança de César é que as marchas ajudem a oposição a vencer o partido da situação e, com a nova gestão, o que seria uma novidade no país, haja novas formulações de políticas públicas.

Como Esmeralda, do começo da reportagem, o jovem também acabou detido pela polícia e diz que, preso, viveu momentos “penosos”. Ele ficou cinco dias atrás das grades. Segundo o relato que fez à reportagem, sofreu intimidação por parte dos agentes penitenciários e, de novo, uma tentativa de “conversão” à Frelimo. “Foram os piores dias da minha vida”, disse.

O jovem ativista vivenciou a super- lotação da cadeia. Diz que ficou com outros 17 presos numa pequena cela — ele não soube estimar seu tamanho. Não havia banheiro nem vaso sanitário. César disse que ele e os outros internos eram obrigados a defecar no chão da própria cela, ao lado dos espaços onde dormiam.

Segundo o eletricista, deitavam-se todos sobrepostos e sem cobertor, sujeitos ao calor do dia e ao frio da noite. Não havia colchonete, e foram privados de alimentação. A refeição, disse o rapaz, só era servida quando os familiares subornavam o policial em serviço.

“Revoltou-me o fato de ter sido preso injustamente e, durante o julgamento, no Tribunal Distrital de Kampfumu, em Maputo, não terem provado se cometi o crime de incitação à violência de que me acusavam”, disse. Ao deixar a prisão, o rapaz decidiu voltar às marchas. Prometeu resistir. Procurada para comentar as denúncias dos ativistas, a polícia preferiu o silêncio.

Desde outubro do ano passado, morreram ao menos duas crianças durante as manifestações. O Observatório dos Direitos das Crianças exigiu “imediata investigação sobre o ocorrido e a respectiva responsabilização administrativa e criminal dos autores morais e materiais deste ato macabro”.

Já a Human Rights Watch emitiu nota no fim daquele mês para criticar que outras duas crianças ti- vessem dado entrada em estado grave num hospital da capital. “As forças de segurança moçambicanas usaram força excessiva, incluindo munições reais, balas de borracha e gás lacrimogêneo, contra manifestantes maioritariamente pacíficos”, criticou.

A BRASIL JÁ não conseguiu confirmar se eram as mesmas crianças.

Cientista político e presidente da Rede de Defensores de Direitos Humanos da África Austral, Adriano Nuvunga afirma que as marchas convocadas pela Renamo são “muito importante”. Segundo ele, as mobilizações revelam que o povo está se revoltando contra a injustiça eleitoral, apesar das ameaças e da repressão policial, dos abusos e das violações de direitos humanos.

O ativista diz que ao usar gás e disparos a esmo — inclusive com balas reais —, a ação policial em Moçambique resultou em mortes e deixou pessoas feridas. Mesmo assim, diz, “as intimidações policiais não retraíram os manifestantes nesta luta pela reposição da verdade eleitoral”. O objetivo, para Nuvunga, é exigir respeito ao que considera ser a vontade popular depositada nas urnas.

O cientista político aponta para o desgaste de décadas do governo da Frelimo para a mudança no com- portamento do eleitor, que trocou “o silêncio das eleições anteriores pela manifestação e resistência”. Para ele, os tantos anos do partido no poder fizeram com que as pessoas já não se identifiquem mais com o governo e questionem a liderança do presidente Filipe Nyusi.

Mesmo assim Nuvunga diz estar reticente sobre uma eventual derrota da Frelimo nas próximas eleições: “Se isso vai resultar na queda do regime, não está claro. Mas uma coisa está clara: o povo está cansado da inércia do governo e da regressão da democracia multipartidária. Muito pode mudar nas eleições presidenciais, legislativas e nas assembleias provinciais, embora dependa muito de como é que o partido Renamo vai se organizar.

As manifestações não resultam de mérito da Renamo, e sim da zanga da população com o partido Frelimo”. 

Em relação à violência policial, o cientista político afirma que a força de segurança se especializou em bater nas pessoas em favor do governo e que “não aproveita as crises para melhorar”. Pelo contrário, segundo Nuvunga, a polícia, como aparato do Estado, “assevera os instrumentos de sevícia, intimidação e morte numa clara di- vergência de seu papel em um governo democrático”.

“O povo está cansado porque o partido Frelimo ficou igual ao colono [colonizador] e tornou-se um instrumento de extorsão, humilhação, marginalização e de enriquecimento de uma pequena minoria que exclui partes importantes da sociedade”, diz: “É isso que o colono fazia”.

As desculpas do comandante

Comandante da polícia de Moçambique, Bernardino Rafael pediu desculpas no fim de dezembro pelas mortes provocadas pela repressão policial e definiu os episódios como “imprevisíveis”. Ele disse ainda que o objetivo da corporação durante o pro- cesso eleitoral era garantir a ordem.

“Há sempre situações imprevisíveis e nós tivemos incidentes em que um jovem perdeu a vida. A polícia lamenta esta ocorrência e, com muito respeito e amor à vida, nós não temos vergonha em dizer que pedimos desculpa por este incidente e vários outros regis- trados”.

Porta-voz da Renamo, José Manteigas, diz que não há espaço para o retorno da guerra civil Crédito: Lucas Menezes

Ouvido pela BRASIL JÁ, o porta-voz da Renamo, José Manteigas, afirmou que não há espaço para o retorno à guerra civil, ainda que alguns de seus aliados e correligionários tenham sugerido a possibilidade sempre que se falou do resultado eleitoral do ano passado.

“As manifestações pacíficas constituem nossa principal arma de guerra atualmente, apesar de o partido no poder, Frelimo, tudo fazer para que se volte à guerra. E isto não vai acontecer”, afirmou Manteigas. Segundo o porta-voz, a Renamo se reinventou ao aceitar “a desmilitarização, a desmobilização e a reintegração” dos seus ex-guerrilheiros nas Forças Armadas e na polícia.

Por isso, para ele, “quem vai se rebelar é o povo, como tem ocorri- do com a adesão às nossas manifestações”. O político afirmou, ainda, que a assinatura de acordo de paz definitiva de Maputo, firmado em 9 de agosto de 2019, entre o líder da Renamo, Ossufo Momade, e o presidente da Re- pública, Filipe Nyusi, demonstrou o compromisso pela preservação da paz e do bem-estar social, “ainda que a Frelimo não queira que prevaleça”.

Segundo ele, o partido do governo usa “armas do Estado para perseguir políticos da oposição, vozes contrárias da sociedade civil e jornalistas que denunciam os escândalos dos governantes”.

Procurada pela reportagem, a ministra da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, Helena Kida, reconheceu que há superlotação nas cadeias e que a população carcerária está em condições desumanas, e que isso vai de encontro ao respeito aos direitos humanos.

No entanto, ela afirmou haver um esforço do governo para que o problema seja resolvido, ainda que o país não tenha dinheiro por conta das restrições orçamentárias causadas pela redução do apoio financeiro do exterior. Sobre os abusos da polícia, a ministra disse que cabe ao Ministério Público instaurar ações judiciais contra os agentes policiais envolvidos em cada caso.

Questionado a violência policial e o estado das prisões, o MP preferiu o silêncio, bem como a Frelimo, que também se silenciou.

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