Foto ilustrativa. Crédito: JC Mcllwaine/ONU

Foto ilustrativa. Crédito: JC Mcllwaine/ONU

Novos-velhos muros europeus

A proposta italiana para criação de hub externo de repatriações e deportações de imigrantes

30/12/2024 às 13:32 | 8 min de leitura | Edição Impressa
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O substantivo passaporte abriga em si o verbo passar e o substantivo porto. De acordo com a Enciclopédia Treccani, o termo é usado desde a Idade Média e servia como salvo-conduto emitido pela Igreja Católica e monarcas, permitindo a circulação de viajantes e mercadorias por diferentes territórios.

No século 19 e início do 20, o passaporte era facultativo para a circulação em muitos países europeus. A Primeira Guerra Mundial, porém, restabeleceu controles de fronteiras e a exigência do documento.

A negação de cidadania a judeus e o consequente impedimento para a emissão de passaportes foram algumas das medidas restritivas que culminaram na segregação e deportação de seres humanos para os campos de concentração.

Em 2007, no livro “Bilal: il mio viaggio da infiltrato nel mercato dei nuovi Schiavi”, o jornalista Fabrizio Gatti escrevia o quanto aquele documento determinava a possibilidade de vida de pessoas:

“O que lhe impede de permanecer na Europa é um pedaço de papel de 25 por 25 centímetros e um carimbo. Na Itália da máfia, dos corruptos e corruptores que se tornam ministros e parlamentares, o problema do estrangeiro é que ele não possui aquele papel. Ele é um clandestino. Uma nova classe social na Europa do século 21.” 


Muitos anos antes, em 9 de maio de 1950, Robert Schuman, ministro das Relações Exteriores da França, invocou a solidariedade entre os países europeus para a construção de relações pacíficas.

A primeira frase do famoso discurso de Schuman —que anos mais tarde levaria o dia 9 de maio a se tornar o Dia da Europa— invocou a missão europeia, diante do passado de guerras, de reconstruir um futuro diferente:

“A paz mundial não poderá ser salvaguardada senão com esforços criativos e proporcionais aos perigos que a ameaçam”.

Os perigos, no discurso de Schuman, ainda pareciam ser uma rivalidade entre a França e a Alemanha.

Os esforços, naquele caso, consistiam na criação de uma Comunidade Europeia do Carvão e do Aço —para cooperar na produção das duas matérias primas essenciais para a reconstrução do continente e da economia dos países no pós-guerra.

Aderiram à iniciativa, além de Alemanha e França, Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo. Foi essa a gênese do que anos mais tarde conheceríamos como União Europeia

Ainda que a cooperação econômica, o mercado único e a moeda comum componham um dos pilares estruturais e, como vimos, fundadores da União Europeia, uma das suas marcas mais conhecidas é a livre circulação de pessoas.

Mas o que virou norma da União Europeia em 1993 havia sido acordado entre Alemanha, França, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo oito anos antes, em 14 de junho de 1985, na pequena cidade de Schengen, no Sul de Luxemburgo, justamente no lugar onde o país fazia fronteira com Alemanha e França.

Se a ideia de um passaporte comum entre os países tinha sido abandonada, a convenção que entraria plenamente em vigor dez anos mais tarde modificou os controles de fronteiras, permitindo que as pessoas viajassem com seus documentos nacionais.

Em 1995, Espanha e Portugal passaram a integrar o Espaço Schengen.

Dois anos mais tarde, foi a vez de Itália e Áustria.

Em 1999, o Tratado de Amsterdã incorporou o acordo de Schengen ao quadro jurídico da União Europeia.

Isso não quer dizer que atualmente todos os países da União Europeia sejam parte do acordo, nem que todos os Estados que aboliram os controles de suas fronteiras internas sejam membros da União Europeia.

Por fim, nem todos os países signatários de Schengen continuam a manter suas fronteiras abertas. 

"Os muros não funcionam"


De 1985 para cá, apesar da queda do Muro de Berlim poucos anos após a assinatura do acordo de Schegen, a questão das fronteiras europeias e a concepção sobre livre circulação mudaram bastante nos debates políticos da região.

“Os muros não funcionam, já vimos isso. A União Europeia nasceu também da queda de seu muro mais famoso, aquele que separava Berlim, e agora simplesmente voltamos a conceber a necessidade de criar fortalezas e muralhas”, concluiu Elena Monicelli, diretora da Fundação Scuola di Pace Monte Sole, uma organização que faz parte da rede internacional ICSC Europe (International Coalition of Sites of Coscience, na sigla em inglês).

Atualmente o Espaço Schegen abrange mais de 4 milhões de quilômetros quadrados, com uma população de 420 milhões de pessoas de 29 países, dos quais 25 pertencem à União Europeia.

Dos países do bloco, apenas Chipre e Irlanda não integram o espaço. O Chipre porque ainda não atingiu as condições necessárias de segurança e estabilidade; a Irlanda por decisão própria, uma vez que ao integrar o acordo, mudaria a liberdade de seus cidadãos circularem pela Grã-Bretanha.

Quatro países, embora fora da União Europeia, compõem o acordo. São Islândia, Licechtenstein, Suíca e Noruega. De acordo com os dados do Conselho Europeu, 3,5 milhões de pessoas atravessam diariamente as fronteiras internas do Espaço Schegen. 

Em 2024, pelo menos oito países restauraram os controles fronteiriços, ainda que temporariamente.

O argumento apresentado à Comissão Europeia por Alemanha, Áustria, Dinamarca, Eslovênia, França, Itália, Noruega e Suécia, em geral, girou em torno do possível risco de ações terroristas acrescido pelo agravamento da crise —termo utilizado pelos países para o conflito— no Oriente Médio, riscos associados às imigrações irregulares, além da pressão migratória no sistema de acolhimento dos refugiados e no fornecimento de serviços básicos, além da guerra na Ucrânia e dos perigos representados pelos demais conflitos e instabilidades no Afeganistão, Turquia, Siria e países do Norte da África.

Para Elena Monicelli, a maior fragilidade do projeto europeu reflete hoje a situação dos conflitos nas regiões vizinhas e nas ameaças terroristas. A tão aclamada paz do continente foi o resultado da exportação dos seus problemas.

“Nós levamos nossos problemas para fora das fronteiras”, afirma: “Os conflitos continuaram fora da área Schegen e dos muros europeus e pensávamos que assim estávamos construindo a paz.”

Uma das premissas do tratado de Schegen foi justamente o reforço da vigilância e controle das fronteiras externas, contando ainda com a cooperação entre as forças policiais de todos os países e o compartilhamento de dados e informações. 

Uma batalha de memória


Para o professor da Universidade de Milão, Vincenzo Russo, o que se percebe hoje é também uma batalha de memória sobre o passado.

Segundo ele, Itália, Portugal e outros países europeus que viveram governos fascistas durante o século 20, se veem diante de políticos e movimentos que negam a história e a violência do passado.

“É aí que percebemos que só o estabelecimento de uma convenção de direitos não é suficiente. É preciso mudança cultural.”

Como explica, os dois principais discursos que circulam na opinião pública europeia sobre os imigrantes são de uma construção lexical fortemente conectada com a cultura colonial:

“Por um lado temos toda a violência da extrema direita que não considera nos imigrantes o status de seres humanos. Do outro lado, temos uma política que continua a olhar para os sujeitos migrantes como força de trabalho, que podem ser acolhidos, enquanto dispositivo necessário para os sistemas econômicos.”

O professor conclui lembrando que era assim que os africanos escravizados ou a mão de obra das colônias eram vistos pelos europeus nos séculos do colonialismo. 

Antonio Missiroli, ex-conselheiro na Comissão Europeia e diretor do Instituto de Estudos sobre a Segurança, em seu último livro, “La difesa dell’Europa”, publicado em 2024, aponta o início de um processo de mudança na abertura das fronteiras, com a divisão interna dos países europeus sobre a participação da ação conjunta com os Estados Unidos contra o Iraque de Saddam Hussein, em 2003.

De um lado, França e Alemanha foram fortemente contrárias; do outro, especialmente Inglaterra e Espanha favoráveis. Isso gerou, segundo Missiroli, um grande ruído sobre as ambições franco-alemãs de serem os porta-vozes do bloco.

Após a invasão do Iraque, “começou uma longa temporada de instabilidade e violência naquele país, que causou muitíssimas vítimas entre civis iraquianos e inspirou ações terrorísticas na Europa nos anos seguintes”.

Os primeiros ataques foram os de 11 de março de 2004, em Madri, e de 7 de julho de 2005, em Londres. É nesse contexto que em 2004 nasce a Frontex, a Agência Europeia da Guarda Fronteira e Costeira. 

No ano seguinte, 2005, o refugiado político Dagmawy Yimer fugiu do seu país, a Etiópia, depois de uma violenta repressão a manifestantes contrários ao governo do então primeiro-ministro Meles Zenawi.

Atravessando o deserto e sendo preso na Líbia, nos campos para migrantes que tinham sido, já à época financiados por acordos entre os governos italiano de Silvio Berlusconi e líbio de Muammar Gaddafi, Yimer ainda se emociona ao me contar sobre o dia em que atravessou o Mediterrâneo, em 2006, e avistou Lampedusa.

“Alguns morreram, outros se perderam, mas nós estávamos ali. Os europeus fazem um jogo maquiavélico com os imigrantes. A impressão que eu tenho é como se tudo fosse um teste, para que na Europa entrem apenas os mais fortes.”

Yimer que era estudande de Direito quando deixou Adis Adeba, hoje é documentarista e vice-presidente da organização Arquivo de Memória de Migrantes, na Itália. 

LEIA TAMBÉM: Líderes europeus fabricam novos inimigos —e os da vez são os imigrantes

Para Missiroli, o impacto gerado nos anos seguintes, com o início da Primavera Árabe, em 2011, foi uma sobreposição entre as concepções de segurança interna e externa da União Europeia, que dominaram e continuam a guiar o debate público.

Especialmente a partir de 2015, o acolhimento aos refugiados e a ameaça terrorista apareceram cada vez mais conectados.

O atentado à Redação do francês Charlie Hebdo em 7 de janeiro daquele ano, reivindicado pela Al-Qaeda e executado por dois franceses, foi sucedida pela chegada de um dos maiores fluxos de migrantes e refugiados a procura de asilo em território europeu.

Segundo dados do Parlamento Europeu, entre 2015 e 2016, na chamada crise migratória, 1 222 690 indivíduos pediram asilo em território europeu. Na mesma época, eram contabilizados 2,3 milhões de travessias consideradas irregulares. 

Os atentados em Paris no dia 13 de novembro de 2015 tinham entre os terroristas, pela primeira vez, refugiados. Um era afegão, com status de proteção política; e o outro, um homem com passaporte sírio.

Na mesma época, a Europol apontou haver conversas entre o Estado Islâmico e traficantes envolvidos no transporte de imigrantes para que facilitassem a infiltração de militantes terroristas em solo europeu. Desde então, a ascensão da extrema direita só fez aumentar a criminalização da imigração.

Detenção e deportação de imigrantes 


Há poucas semanas a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, organizou um encontro lateral ao Conselho Europeu para propor um hub de repatriação e deportação de imigrantes irregulares.

Autoridades de Países Baixos, Dinamarca, Polônia, Grécia, Áustria, Chipre, Hungria, Malta, Eslováquia, República Tcheca e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, participaram do encontro. Meloni apresentou o acordo assinado em 2023 entre Itália e Albânia permitindo a construção de dois centros de detenção e deportação de imigrantes.

Foto ilustrativa. Crédito: Marco Dormino/ONU

As estruturas poderão abrigar até 30 mil pessoas. Mulheres, crianças e os considerados frágeis continuarão a aguardar pelo processo de acolhimento ou repatriação na Itália.

No primeiro transporte de dezesseis imigrantes para os centros fora das fronteiras europeias, quatro deles tiveram de retornar no primeiro dia. Eram menores de idade. Os outros doze voltaram ao território italiano em seguida porque o Tribunal de Roma determinou a anulação da detenção dos imigrantes nos centros albaneses.

A decisão estava baseada no pronunciamento da Corte de Justiça Europeia do dia 4 de outubro deste ano, estabelecendo que os critérios para definir se um país é seguro ou não para a repatriação do imigrante deve ser definido caso a caso, ao contrário do processo acelerado proposto pelo governo Meloni.

Insistindo na viabilidade de seu projeto, a coalizão de direita apresentou no último 22 de outubro novo decreto com a lista de dezenove países seguros —excluindo Nigéria, Camarões e Colômbia da lista original de 22 países— para os quais, segundo o governo, é possível fazer um processo acelerado.

Na lista, estão:

  • Albânia
  • Argélia
  • Bangladesh
  • Bósnia-Herzegovnia
  • Cabo Verde
  • Costa do Marfim
  • Egito
  • Gâmbia
  • Gana
  • Kosovo
  • Macedônia do Norte
  • Marrocos
  • Montenegro
  • Peru
  • Senegal
  • Sérvia
  • Sri Lanka
  • Tunísia

O governo propôs, ainda, a revisão anual da lista para, assim, amenizar os questionamentos jurídicos.

A oposição italiana acusa o governo de desperdício da verba pública, cerca de 800 milhões de euros, para a violação de direitos humanos em prol da propaganda política.

Elena Monicelli vê na abordagem do governo italiano ação de racismo e colonialismo com a própria Albânia. “Eles não querem os imigrantes aqui, mas podemos deixá-los lá”.

Para além disso, ela afirma que esse transporte dos imigrantes na Albânia e todo o conflito que agora se instaurou contra a Justiça do país ocorrem justamente no período de aprovação do orçamento anual.

“Com tantas restrições e cortes que eles continuarão fazendo na saúde, na educação, nos serviços públicos, eles criaram o artifício para desviar a atenção.”

O que acontecerá aos próximos imigrantes recolhidos em águas italianas ainda é uma incógnita. De concreto, temos os primeiros dois centros oficialmente criados para além das fronteiras da União Europeia, com uma ala prisional e toda a estrutura de cárceres.

Durante o encontro lateral ao Conselho Europeu, o governo neerlandês relatou que estuda uma solução parecida do acordo Itália-Albânia com a Uganda. A Dinarmarca também pensa em construir centros para imigrantes no Kosovo. Espanha, França e Alemanha se declararam contra a proposta de hubs externos para a gestão dos fluxos migratórios. 

Em maio deste ano, o conselho e o Parlamento Europeu chegaram a um acordo para mudanças na legislação europeia em relação ao Espaço Schengen. A principal delas regula a reintrodução das fronteiras —que poderão continuar ocorrendo, mas que devem sempre ser concebidas como último recurso e não por período maior a três anos. 

Além disso, depois da pandemia de covid, quando os controles e as restrições foram estabelecidos por uma questão sanitária, o novo Código das Fronteiras Schengen dá ao Conselho Europeu poder de bloqueio temporários das viagens nas fronteiras externas, o pedido de testes e a implementação de quarentenas em caso de emergência de saúde pública em grande escala.

Até agora, inclusive durante a pandemia de covid, a União Europeia podia apenas recomendar medidas protetivas. 

O advogado Luca Barbari escreveu em 2018, na apresentação do livro “Il diritto al Viaggio —A bbecedario delle migrazioni”, que não é possível pensarmos em cessar as migrações.

Segundo ele, “sobretudo porque as pessoas escapam para salvar a própria vida e a de seus filhos e não pararão nunca diante de uma proibição, por mais peremptória que possa ser, a menos que seja diante da morte”.

Do início deste ano até o dia 19 de outubro, segundo dados da OIM, a Organização Internacional para as Migrações, pelo menos 531 pessoas morreram e outras 731 continuam desaparecidas na rota de travessia do Mar Mediterrâneo. 


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