Neusa Sousa é um dos rostos marcantes da RTP África. Nascida em São Tomé e Príncipe, foi em Lisboa, onde vive há 22 anos, que a profissional escreveu sua trajetória como jornalista. A notoriedade de Neusa também se dá por sua voz ativa no empreendedorismo negro e na luta antirracista.
O caminho profissional e pessoal deu a ela consciência do lugar que ocupa, que, disse à BRASIL JÁ, não é trivial. Por isso, Neusa lamenta que a sua história ainda seja um ponto fora da curva, porque a exceção continua a ser a regra —especialmente de jovens jornalistas que têm outras variantes linguísticas sem ser a europeia.
“Muitos profissionais [de outros países de língua portuguesa] ficam com a autoestima baixa e acabam desistindo. Vários chegam a concluir o curso, mas nunca conseguem trabalho, pois a forma peculiar com que falam é diferente do que é o considerado normal”, afirmou Neusa.
Para ela, o jornalismo é apenas uma das áreas em que uma variante pode servir para que se manifeste a xenofobia e o preconceito linguístico.
"Eu já peguei prova com uma nota baixa e comparei com um amigo português que tirou nota alta. E a gente escreveu basicamente a mesma coisa, só que eu escrevi com o português do Brasil, e ele com o de Portugal."
O relato é de uma brasileira que estudou Relações Internacionais em Portugal. Ela prefere não se identificar para não se indispor com os colegas.
À BRASIL JÁ, ela compartilhou as más experiências, e disse que embora tenha sido bem recebida por alguns, enfrentou preconceito por causa do sotaque brasileiro.
"Era muito nítido, na correção das provas, como às vezes os brasileiros saíam prejudicados."
Segundo a brasileira, alguns professores não se esforçavam para entender as diferenças linguísticas entre o português do Brasil e o de Portugal, e davam notas injustamente baixas para os brasileiros. Mas o preconceito não parava por aí. A estudante relatou casos de xenofobia e racismo explícito.
"Já aconteceu de um professor no meio da aula imitar o sotaque brasileiro: 'Vocês estão entendendo o que eu estou falando?' [ressaltando o uso de 'você' e da conjugação do verbo no gerúndio, mais utilizado por brasileiros e menos por portugueses]. Enquanto falava assim, imitava um macaco com gestos e sons", denunciou a brasileira.
Segundo ela, a maioria dos alunos riu, inclusive brasileiros.
Escolas portuguesas sem preparo para a diversidade
O relato expõe uma xenofóbica e discriminatória em instituições acadêmicas em Portugal. Como resultado, estudantes que em tese compartilham a mesma língua acabam tendo experiências educacionais distintas.
Para além do ambiente universitário, há casos de preconceito linguístico relacionado ao jeito de falar e escrever também nas escolas.
Isso é o que tem pesquisado Margarida Ferreira, aluna do mestrado de Português como Língua Segunda ou Estrangeira na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Em seu estudo, ela investiga a discriminação linguística nas escolas portuguesas. A ideia é analisar as dificuldades enfrentadas por alunos que não falam português europeu e refletir sociolinguisticamente sobre como essas barreiras impactam o desempenho acadêmico e a integração social desses estudantes.
A proposta de tema surgiu enquanto ela estudava multiculturalismo. Ao fazer um trabalho sobre as dificuldades enfrentadas pela etnia cigana nas escolas portuguesas, ela se lembrou dos desafios que seus colegas brasileiros e angolanos enfrentavam durante os anos escolares.
"Eles sempre foram postos de lado pelos colegas e pelos professores", comentou.
Observando essa situação, ela percebeu que havia pouca pesquisa sobre a discriminação linguística em Portugal. O tema de sua tese emergiu da constatação dessa lacuna.
"Cada vez temos mais imigrantes da CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa], e a comunidade brasileira é a maior entre eles. A escola portuguesa não está preparada para apoiar esses jovens", disse Margarida.
O estudo, ainda em andamento, inclui um questionário online, seguido de entrevistas que aprofundam a pesquisa. Até o dia 25 de junho, ela já havia recebido 155 respostas.
Margarida adiantou à BRASIL JÁ trechos de alguns relatos que recebeu de pais de crianças e adolescentes:
. "A professora de português de um dos meus filhos não aceita as variedades do PB [português brasileiro] e do PA [português angolano]"
. "Uma professora me disse que reprovou meu filho pois ele não sabia escrever o português de Portugal"
. "Meu filho foi discriminado por não apresentar o trabalho falando o português de Portugal"
. "Minha filha é imitada por colegas e ouve indiretas de professores que criticam o sotaque do Brasil"
. "Ao se apresentar ao professor no primeiro dia de aula foi corrigida na frente dos alunos pela forma de falar"
. "Amiguinho pediu para ela falar direito e a ofendeu"
. "Ouvimos dos professores: 'Fale português!' / 'Em casa pode falar a língua da mãe, mas na escola não' / 'o facto de haver brasileiro na sala prejudica a manutenção da pronúncia portuguesa na escola"
Margarida afirmou que tem se surpreendido com as histórias. "Essas crianças têm duas identidades: a brasileira, que mantêm em casa com os pais e familiares, onde falam português do Brasil; e a portuguesa, que adotam na escola para se esforçarem a falar o português europeu e não se sentirem excluídas."
A pesquisadora, que é portuguesa, disse que já tinha noção da existência do preconceito, mas não imaginava estar tão entranhado na sociedade. "Ver estes relatos tem sido arrepiante", afirmou.
O português que incomoda
A influência do português brasileiro em Portugal tem gerado incômodo desde as décadas de 1970 e 1980, segundo Carol Jesper, mestre em Educação e professora de língua portuguesa. Em geral, a pesquisadora atribui esse "incômodo" à chegada ao país das novelas brasileiras.
Ao mesmo tempo, o número de falantes no Brasil, mais de 200 milhões, contrasta com os pouco mais de dez milhões de portugueses e gera temores de que o português europeu seja "engolido" pelas demais variantes da língua.
No entanto, a especialista que também é autora de livros didáticos destaca que, para uma língua sobreviver, ela precisa de falantes.
"O Brasil, por ser grande e ter muitos falantes, poderia ser visto como algo positivo para a conservação da língua", afirmou Jesper.
"Mesmo que não houvesse brasileiros falando português, o português de hoje não seria o mesmo de quinhentos anos atrás. O processo natural de uma língua é de mudança, e quanto mais falantes, mais mudanças ocorrerão inevitavelmente", detalhou.
Puristas insistem no passado
Na contramão, portugueses “puristas” insistem que a língua “verdadeira” é a do passado, refletindo um preconceito que ignora a evolução natural das línguas. Sobre isso, alguns pesquisadores defendem que a “língua de Camões” está mais próxima ao jeito do brasileiro falar —com vogais mais abertas, por exemplo.
Carol Jesper opina que a diversidade linguística deveria ser valorizada e vista como uma oportunidade de aprendizado e reflexão crítica.
"O filho falar 'brasileiro' incomoda, mas falar francês ou inglês, não? Há um nível de xenofobia aí. Com respeito à diversidade, poderíamos ampliar nosso repertório e conhecimento", argumentou.
Para Jesper, a polêmica também está atrelada a portugueses enxergarem o brasileiro como pessoas inferiores, expondo uma mentalidade ainda colonial. Nesse sentido, a pesquisadora lembrou que a imposição do português nas colônias também foi uma demonstração de poder.
"Quando você impõe uma língua num território que tinha várias outras, isso é um troféu para quem conseguiu fazer essa imposição. Hoje, a população de Portugal não pode ser responsabilizada por isso, mas essa distância histórica não pode ser ignorada", disse Jesper.
A pesquisadora afirma que tentar distinguir rigidamente as variantes do português revela falta de compreensão sobre o processo natural de mudança.
"São línguas mutuamente inteligíveis, apesar das suas características específicas. Compartilham muito ainda de vocabulário, de estrutura, até mesmo de sotaque. Então, seja dentro do país ou em outro continente, o sotaque é diferente, mas a gente se entende."
Constante tentativa de desqualificação
Um levantamento feito pela pesquisadora Alanis Mação Marau, focada no preconceito linguístico nas redes sociais, especialmente no X (antigo Twitter), corrobora a discussão.
O preconceito contra variantes também observado em relação ao português falado em países africanos como, por exemplo, Angola e Moçambique —o que evidencia o desprezo pelo português das ex-colônias.
Marau aponta para a percepção de inferioridade associada ao português brasileiro, que está enraizada na herança colonial e é perpetuada por um sentimento de superioridade dos portugueses.
Eles “acham que porque foram os colonizadores trouxeram a língua para nós, o que eles falam é o correto e o que a gente fala é errado”.
A pesquisadora completa que mantém esperanças de que as gerações mais jovens, influenciadas pela diversidade de conteúdos na internet, possam contribuir para uma maior aceitação das diferentes variantes do português. “Eu acho que tende a melhorar, tende a ser mais aceitável para os mais jovens.”
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