Mostra 'Presenças Invisíveis', no Museu da Justiça do Rio de Janeiro, região central do Rio de Janeiro (Arquivo). Crédito: Tânia Rêgo, Agência Brasil

Mostra 'Presenças Invisíveis', no Museu da Justiça do Rio de Janeiro, região central do Rio de Janeiro (Arquivo). Crédito: Tânia Rêgo, Agência Brasil

O relato de Nicolle Moutinho, advogada vítima de um stalker

'Não venha agora, ele está de novo na porta da sua casa', é uma frase que vira e mexe Nicolle ouve de sua vizinha

04/11/2024 às 10:58 | 5 min de leitura
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Nasci em 1989, tempo em que a internet era algo inimaginável. Combinava de ir ao cinema com os amigos e, pasmem, na hora e lugar marcado todos nós estávamos lá. Sim, tive a sorte de viver uma adolescência sem a exposição das redes sociais. 

Foi assim, em grupos de amigos, que pela primeira vez beijei na boca, conheci namorados e vivi a minha adolescência. A forma utilizada para conhecer pessoas e me relacionar, para mim, era assim: amigos de amigos. Na época da faculdade tudo mudou. 

Utilizávamos Orkut, Facebook e a tecnologia estava, literalmente, nas nossas mãos. Como sempre namorei, desde os meus 15 anos, segui o caminho dos “namoros sérios” e fiquei por fora do avanço do universo solteiro versus internet. 

Nessa caminhada, tive meu primeiro namoro aos 25 anos. Com ele, vivi um relacionamento maduro e leal por 8 anos e meio. Juntos, ainda no começo do relacionamento, reconstruímos a nossa vida em Lisboa. 

Uma super mudança de continente que foi muito bem-sucedida e me fez feliz. “Ah, que frase clichê dizer que terminou porque querem seguir caminhos diferentes”, poderá você dizer. Mas é bem por aí mesmo. 

A terapia, que me acompanha há mais de 10 anos, me ajudou a perceber que era a hora de colocar um ponto final. E apesar de ser muito duro e difícil foi o que fizemos. Após o fim desse relacionamento eu precisei parar a minha vida para viver o luto do término. 

Foram quase oito meses para reorganizar a minha cabeça e coração. Comecei a praticar novos esportes, voltei a frequentar a academia, viajei pelo mundo, fiz o doloroso processo de congelamento de óvulos, reorganizei meu trabalho e metas a longo prazo. 

“Chegou a hora de conhecer novas pessoas, vamos a isso, estou pronta”, pensei. Coragem. Respirei fundo e falei para mim mesma “vai se divertir! É uma brincadeira... e só”. 

Assim, com o coração acelerado de uma menina de 15 anos, eu escolhi as minhas fotos, informei alguns dados pessoais e comecei a usar os tais aplicativos de relacionamentos. Até que, em abril, fiz um match com um homem super bonito e inteligente. 

Foi a primeira vez que iniciei uma conversa em um app de relacionamento. Falamos de arte, história e filosofia. Como boa aquariana que sou e que adora conversas fora da caixinha, eu fiquei curiosa e tratei de combinar um encontro pessoalmente para perceber melhor quem era aquela pessoa. 

O nosso encontro foi muito divertido. Ele disse que tinha morado na Índia, Irlanda, Canadá, Espanha. Não faltou conversa. Ele fala várias línguas e, claramente, sabia de tudo um pouco. Tinha um sorriso tímido e ar inteligente. 

Fiz um breve resumo da minha jornada, mostrei a foto do meu cão no celular, mas percebi ali mesmo que aquilo não iria avançar muito mais, afinal, as nossas vidas eram bem diferentes. Ao me despedir, com um beijo na bochecha, eu disse que tinha adorado ouvir as histórias dele e que, sim, eu queria ouvir um pouco mais. 

Sorrimos e seguimos cada um para o seu lado. Não houve contato físico, como até fazia sentido naquele primeiro encontro. À noite ele me mandou uma mensagem dizendo que tinha adorado me ver. Respondi que fora recíproco. 

Como ele ia fazer a caminhada de Santiago da Compostela, e eu tinha viagens para Espanha e Itália, decidimos que falaríamos na volta, quando ambos estivessem em Lisboa. Na reta final dessa viagem, recebi uma mensagem dele. 

Queria saber se eu estava disponível na semana seguinte para o segundo encontro. Seria em um museu. Não respondi na mesma hora que visualizei, mas o mostrei para as minhas amigas. Ao chegar no hotel, levei um susto. 

Havia áudios em que ele dizia que queria ter 32 filhos comigo, que me amava, que tinha tesão em mim e que iria se casar comigo. Tudo completamente confuso. O tom da voz parecia diferente. 

Naquela mesma noite, ele ainda encaminhou um vídeo feito por ele e postado em seu canal no Youtube sobre o seu processo de descoberta do diagnóstico de esquizofrenia. 

Diante das mensagens desconexas, minhas amigas disseram: “Bloqueia o contato dele e acabou. Você não precisa justificar nada sobre isso, só bloqueia e segue a sua vida.” Foi o que eu fiz, em abril. Voltei a Lisboa, e a minha vida seguiu exatamente de onde parou antes da viagem. 

Até que na última semana de julho o meu telefone tocou às 22h45. Era ele. Não atendi e imediatamente bloqueei o contato. Como que eu não fiz isso antes? “Mas, ok, vamos em frente”, pensei. Na semana seguinte, ao iniciar o meu dia no trabalho estava lá, na minha caixa de mensagens, seu nome. 

Eu não havia informado o meu email. Na mensagem, ele escreveu: “Sou o [fulano]. Tive dois meses internado num hospital mental. Quero vê-la.” Eu respirei fundo e respondi: “Espero, de verdade, que você esteja bem. Imaginei que algo assim tivesse ocorrido, mas fico aliviada e feliz por saber que você se encontra bem.” 

A mensagem otimista mascarou a minha preocupação: como ele conseguiu o meu email? Ele sabia o meu sobrenome. Eu fiquei em pânico. Apesar da sua insistência, eu expliquei que não era a pessoa adequada para voltar a encontrá-lo. 

Na semana seguinte, fui ao Algarve e deixei um amigo em casa com o meu cão. À noite, por volta das 20h, na volta de um passeio com o cachorro, meu amigo percebeu que havia um homem na porta do meu prédio com um saco plástico na mão. 

“O senhor vai subir?”, perguntou. Ele respondeu que não, olhou o cão e perguntou se era meu parente. Ao ouvir que sim, o homem perguntou se eu estava em casa. O meu perseguidor se identificou e disse que tinha um presente para me entregar. 

Imediatamente após ter se despedido, meu amigo me enviou uma mensagem em desespero: “Ele sabe o seu endereço.” Nas redes sociais dele, com os perfis abertos, há inúmeros vídeos em que fala meu nome e diz que eu sou a sua mulher e que vai ter 32 filhos comigo. 

Em alguns momentos, ele me compara a Satanás, falando sobre morte. A minha morte. Ao relatar ao meu irmão, que mora em Lisboa, ele me pressionou a mudar. Para ele, algo inegociável. O meu irmão, em alerta, coletou todos os dados disponíveis sobre meu perseguidor na internet e decidimos ir à delegacia registrar o ocorrido. 

Fiz uma denúncia, apresentei as provas e ouvi que não há nada que possa fazer nesse primeiro momento. A única recomendação é ligar para polícia caso eu o veja próximo a minha casa, afinal, como não tenho um relacionamento amoroso com ele, não há medidas protetivas. 

Me sinto derrotada, vulnerável e exposta. Não tenho mais paz. Não posso mais dormir sozinha. Minha psicóloga compartilhou o contato do psiquiatra. Preciso de medicação. Eu preciso dormir, mas tenho dificuldade. Choro todos os dias. Tenho medo. O que será que ele quer comigo? Será capaz de me fazer mal? Corro risco de morte? 

Não estou mais em casa, mas recordei que esqueci um remédio. Do meu apartamento, eu o vejo novamente na porta do prédio. Mais uma vez com um saco plástico nas mãos. Liguei imediatamente para a vizinha. Aviso que ele está na rua. Ela encontra com ele e diz: “Por favor, pare de perseguir a minha amiga. Todos já sabemos quem você é. Não apareça mais aqui”. 

Com voz doce, ele disse que não vai mais aparecer. No dia seguinte, ele ligou para o meu trabalho para dizer que me ama. Como ele tem o meu número de trabalho? Meu Deus! Os vídeos nas redes sociais se intensificaram. 

Ele gravou mais vídeos falando de mim, citando o meu nome. É assustador. Voltei à polícia e depois de cinco horas de espera, com mais provas para a denúncia, ouço que há pouco a se fazer. Tenho medo de atender o meu telefone, de andar na rua. Só saio com amigas. 

E com frequência minha vizinha me liga: “Não venha agora, ele está de novo na porta da sua casa.” Enquanto a polícia nada faz, me resta o desespero. Mais recentemente minha vizinha me ligou à 1h da manhã. Ele estava deitado no banco em frente ao meu prédio, olhando fixamente para a minha janela. 

Naquele dia, ela foi até ele, mandando que fosse embora. Ele se levantou, enfiou as mãos no bolso para tirar algo. Ela correu. Temeu esperar para ver. Chamada, a polícia o identificou e solicitou que deixasse o local. Inútil. No dia seguinte, ele estava de volta ao mesmo banco. 

Às 4h, novamente a polícia o aborda, mas agora o coloca em um táxi para casa. Meus dias são de choro, pânico e medo. O meu estômago dói, os cabelos caem e recorro ao psiquiatra. É hora de dar adeus para a vida que construí. Não há mais o que esperar. Vou mudar de casa. 

Com a mudança de endereço, e os preços do aluguel nas alturas, vejo minha reserva financeira ir embora junto com a minha saúde e alegria. Sinto que perdi tudo por alguém que nunca me foi nada. O que mais sinto, além de medo e raiva, é pena. Sinto muita pena. 

Não deve ser fácil viver em um mundo hostil a quem tem uma doença mental. Mas, neste caso, eu preciso antes me salvar. 

*Em depoimento ao jornalista Jordan Alves

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