Tânia Bisteka trocou a coroa de rainha pelo capacete de diretora de barracão Crédito: Marcos Serra Lima, BRASIL JÁ

Tânia Bisteka trocou a coroa de rainha pelo capacete de diretora de barracão Crédito: Marcos Serra Lima, BRASIL JÁ

Os bastidores do desfile da Mangueira

Diretora de barracão, Tânia de Fátima Souza Lima, a Tânia Bisteka, recebeu a BRASIL JÁ no barracão da escola de samba

10/02/2024 às 14:46 | 6 min de leitura
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A rotina até parece a de um operário. Mas é, na verdade, a de uma rainha.

Todos os dias, ela pula da cama às 5h, prepara seu café da manhã, verifica mensagens no celular e se arruma para o trabalho. É verdade que em vez de coroa, ela usa um capacete de segurança —rosa, a sua cor preferida. No lugar da sandália de salto alto, botinas de segurança.

Ela trocou a sensualidade do biquíni de pedrarias, brilhos e transparências, por uma calça cargo preta, camiseta básica da escola — de preferência, rosa —e cinturão de ferramentas.

Assim, Tânia de Fátima Souza Lima, a Tânia Bisteka, de 50 anos, ex-rainha de bateria da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, uma das mais tradicionais do carnaval do Rio de Janeiro, reina absoluta no gerenciamento da confecção das alegorias e logística da escola.

Primeira e única mulher a comandar um barracão de escola de samba, Bisteka desempenha a função há dois anos, com a desenvoltura e determinação de uma rainha.

Ela deixou de lado a vida de passista para administrar cerca de 250 funcionários da escola. São ferreiros, carpinteiros, gesseiros, decoradores, costureiras, aderecistas e iluminadores. Profissionais que trabalham para dar cor, luz e forma às alegorias e fantasias das alas que vão contar, na avenida, o enredo “A negra voz do amanhã”, elaborado pelos carnavalescos Annik Salmon e Gui Estêvão.

No carnaval de 2024, a Mangueira vai homenagear a cantora e compositora Alcione, ídolo da comunidade verde e rosa, e uma das fundadoras e presidente de honra da escola mirim Mangueira do Amanhã. A escola começa a desfila na segunda (12), às 4h em Portugal e pode ser assistida pela Globoplay (saiba os horários aqui).

“Tenho um companheiro, o Diego Firmino, com quem divido o trabalho. Mas é como administrar uma casa. Sendo que cuido de um barracão de 3,3 mil metros quadrados com quatro andares, onde até o carnaval trabalham 250 pessoas", afirma.

E continua: "Como numa casa, todos os dias, verifico no começo e no fim da jornada, a limpeza. Observo se os empreiteiros guardaram os equipamentos, verifico se falta alguma coisa no refeitório para o almoço do pessoal e fiscalizo as esquipes para ver se estão usando o material correto, sem desperdício e fazendo tudo como planejado pelos carnavalescos."

Sem perder a chance de retocar o batom cor de rosa, Bisteka mantém o senso de responsabilidade: "Também verifico se os trabalhadores estão usando os equipamentos pessoais e respeitando as normas de segurança”.

O número grandioso de trabalhadores no barracão da Mangueira se repete nos outros onze barracões, que abrigam as escolas do Grupo Especial na Cidade do Samba.

Barracão é como é chamado o ateliê das agremiações. São centenas de artistas, entre artesões, músicos, estilistas, desenhistas, compositores, roteiristas, multiplicados por mais que essa dúzia da elite do carnaval carioca.

Ao todo, só no Rio de Janeiro, são mais de cem escolas de samba, considerando que, além do Grupo especial, também existem outras categorias, como a ouro, prata, bronze, superliga e as mirins. Juntas, elas empregam, direta ou indiretamente, cerca de 45 mil pessoas. É por isso que esta é a maior festa popular do Brasil.

O desfile que vemos na passarela do samba do Rio de Janeiro é apenas um dos muitos que acontecem por toda a cidade, sem falar nos que ocorrem em outras cidades do país, seja em sambódromos seja nas ruas, com blocos que reúnem alguns milhões —literalmente, milhões— de pessoas.

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Carnaval é cultura, mas é também economia

Todo esse movimento gera muito dinheiro para os negócios. No ano passado, só a festa no Rio de Janeiro, segundo a prefeitura, movimentou 4,5 bilhões de reais, cerca de 840 milhões de euros. Segundo a Confederação Nacional de Bens, Serviços e Turismo, em todo o país, o montante chega aos oito bilhões (1,5 bilhão de euros).

O motivo de tanto dinheiro é que, conforme dados do Ministério do Turismo, 45 milhões de pessoas pularam a festa do ano passado. É como se toda a Espanha fosse para a folia brasileira. A estimativa para o carnaval deste ano é repetir o sucesso da movimentação de gente e de dinheiro do ano passado.

Para receber os foliões, a prefeitura carioca vai investir 45 milhões de reais, incluindo as agremiações do Grupo Especial e as dos grupos de acesso entre as beneficiárias diretas. Um valor bastante superior aos 13 milhões que governo do estado destina por meio de renúncia fiscal.

A festa, que também é um negócio, requer responsabilidade.

Por isso que, se for preciso, a graça e a leveza dos gestos da ex-rainha de bateria são deixadas de lado, dando lugar à firmeza para organizar o trabalho e à força para carregar o material ou mesmo para ajudar a empurrar os carros dentro do barracão.

Tânia Bisteka é responsável pela logística. Ou seja, entre as suas obrigações, está a função de zelar pelas manobras para mudar os carros de samba de lugar dentro do barracão e verificar o resultado do acoplamento das esculturas e da finalização das alegorias. Sambar não faz mais parte de seu ofício.

Mangueira na avenida do samba Crédito: João Gabriel, Riotur


Logística de carro e segurança da escola

Nos ensaios de rua ou no ensaio técnico na Sapucaí, Bisteka leva e traz de volta para o barracão as placas de ordenamento das alas e os sinalizadores eletrônicos. Também orienta o caminhão que transporta os instrumentos da bateria. Enquanto todos cantam e sambam, ela se ocupa do bom andamento do ensaio. Na quadra, onde brilhava à frente da bateria, ela não vai mais.

“Não dá para sair do barracão. Mesmo com toda a segurança da Cidade do Samba, a responsabilidade é grande com tudo o que está lá dentro”, diz.

Em outubro, uma ventania danificou duas esculturas. Desde então, ela fica atenta a imprevistos. De novembro até o fim do carnaval —que este ano começa no dia 11 de fevereiro—, ela mora no barracão.

Bisteka diz que fecha a casa, faz uma malinha com mudas de roupa e fica direto no seu cantinho na Cidade do Samba, uma grande estrutura que reúne os barracões de todas as escolas de samba na zona portuária do Rio de Janeiro. Na sua sala tem cama, guarda-roupa, TV, computador, mesa para trabalhar e fazer as refeições.

“Só vou à minha casa nas tardes de sábado para lavar roupa, cuidar das plantas e volto correndo. A Mangueira é a minha casa, a minha família”, diz Bisteka, que não tem filhos e mora sozinha.

Às vésperas do desfile, a diretora de barracão diz que passa uma semana praticamente sem dormir, tirando cochilos de até duas horas por dia para dar conta do recado —e da tensão.

É da competência dela embalar e preparar as alegorias para deixar a Cidade do Samba e partir, em segurança, rumo ao Sambódromo, o que acontece um dia antes do desfile. Como consta no regulamento, os carros têm ordem e hora certa —normalmente de madrugada— para sair e chegar à armação (local de onde parte o desfile) para não atrapalhar o trânsito na cidade.

As escolas perfilam suas alegorias na ordem em que entrarão na avenida. “Meu trabalho é colocar a Mangueira pronta na avenida. Não vejo o desfile. Quando a escola entra na Sapucaí, corro para a dispersão e fico esperando a saída dos carros, para levá-los inteiros de volta ao barracão.”, conta Bisteka.


Do Beco do Cocô para o mundo

Tânia Bisteka diz: “sou muito grata à Mangueira por tudo o que conquistei”. Pudera. A vida dela se confunde com a trajetória de sua escola de samba, que carrega em si a história do território onde está instalada.

Nascida e criada no Morro da Mangueira, na zona norte do Rio de Janeiro, ela tem orgulho de seu passado, que é prova da sua resiliência, como a do morro onde nasceu.

O Morro da Mangueira, antes Morro do Telégrafo, que antes se chamava Morro do Pedregulho (uma pedra gigante). O local, que poderia se chamar Resistência, fica nos fundos do Palácio de São Cristóvão (antiga residência da família real portuguesa).

No século 19, esse espaço, repleto de mangueiras, serviu de refúgio para escravizados que conseguiam fugir. Alguns foram recapturados nesse local, uns ficaram e outros foram chegando. O morro resistiu, abrigou moradias populares e, por fim, se tornou um dos berços do samba.

A diretora de barracão conta que nasceu no Beco do Cocô —só o nome já dá ideia da precariedade da região onde Bisteka viveu até quase os dois anos de idade. Mas ela não se importa. Fala com orgulho da sua história.

Tânia é filha dos passistas Gracinha da Mangueira e Menininho, neta do diretor de harmonia José Balalaika e da diretora de ala Maria do Balalaika. Aos 8 anos, aparentando ter uns 14 anos, pediu para desfilar pela primeira vez na ala da avó, a “É com Nós mesmo”. Assim, sem que ninguém percebesse que entre as componentes adultas havia uma criança, ela estreou na avenida.

“E não parei mais. Fiz balé, dança moderna, sapateado, dança de salão e me formei como bailarina profissional. Com 18 anos, passei para dançar no exterior. Conheci a Europa dançando e voltava no carnaval para desfilar em ala. Em 1996, voltei ao Brasil e aí, já fui convidada para ser mulata-show no grupo de show da Mangueira”, diz.

Desfile de 2023 da Mangueira Crédito: Alexandre Macieira, Riotur

Tânia também foi rainha de bateria em 1999 e em 2001 e, depois, passou a desfilar como passista.

A experiência a qualificou para dar aulas de dança nos projetos sociais da escola de samba. Foi quando teve como aluna a atual rainha de bateria da escola, Evelyn Bastos. O orgulho não a deixa esquecer o encontro.

“A Evelyn tinha 7 anos e já sambava. Mas a mãe dela, a ex-rainha de bateria Valéria Bastos [de 1981 a 1983 e de 1987 a 1989], achava que eu poderia aperfeiçoar os passos da menina. Quando numa dinâmica de grupo perguntei o que ela queria ser ao crescer, Evelyn disse: ‘quero ser você, quero ser rainha de bateria’. E aí está ela, linda, maravilhosa, absoluta como rainha da Mangueira há 10 anos”.

Para este ano, Tânia Bisteka tem um sonho e um plano: sonha com a vitória da sua escola e planeja ingressar na faculdade de logística. Para um, dá suor e sangue no trabalho. Para o outro, sobra determinação e conhecimento prático.

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