A ativista Paula Cardoso é uma voz necessária na luta antirracista. Aos 44 anos, é fundadora da rede Afrolink (afrolink.pt) —uma comunidade digital que busca dar visibilidade a profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país.
Formada em Relações Internacionais, ela trabalhou como jornalista durante 17 anos.
Cardoso é autora dos livros infantis “Força Africana” e da coluna Entre Meadas no jornal Diário de Notícias. Em março de 2023, foi apontada pela revista de negócios Success Pitchers como “uma das dez mulheres líderes mais inspiradoras do empreendedorismo social”.
À BRASIL JÁ, ela expõe os desafios enfrentados por profissionais negros no mercado de trabalho, critica a falta de dados étnico-raciais e defende medidas urgentes para combater o racismo estrutural.
A seguir, trechos da entrevista:
De que forma sua identidade e trajetória foram moldadas pela sua vivência em um contexto europeu?
A sociedade foi mostrando o que eu era a partir de um lugar de muitas impossibilidades. A pessoa branca vê pessoas como ela em todos os lugares. Televisão, jornais, revistas, política, economia. Todas as áreas relevantes da sociedade têm pessoas brancas aqui em Portugal.
Uma criança negra, como eu, vai crescendo com impossibilidades. Eu cresci sem representatividade. Essa consciência comecei a ter muito concretamente a partir de uma experiência em Angola, em 2013, que considero transformadora.
Qual foi a principal motivação para você se engajar na promoção da representatividade negra no mercado de trabalho como uma forma de combater o racismo?
Ao fazer meu primeiro livro infantil, Força Africana [2020], eu precisava de uma ilustradora e não tive muitas opções. Essa dificuldade em encontrar oferta me levou ao Afrolink. E eu não quero que seja assim tão difícil encontrar profissionais negros. Uma pergunta que faço muitas vezes é: por que é que sou a única negra aqui? Muitas vezes as pessoas respondem simplesmente que “não há” ou porque não chegam currículos.
Há uma série de desculpas para a ausência de negros em espaços importantes. É verdade que muitos de nós estamos fazendo serviços domésticos, trabalhando na gastronomia, na construção civil. É verdade e não temos vergonha disso. Mas muitos de nós estudaram e reclamam naturalmente que depois as oportunidades estejam de acordo. Pessoas negras estão sempre em lugares subalternizados.
No meu primeiro contato com a Afrolink, pedi indicação de alguma pessoa que pudesse contar a luta e os desafios de ser negro em Portugal. Você respondeu que poderia ser um exemplo na perspectiva do jornalismo. Poderia contar um pouco mais sobre isso?
Quando ocupei o lugar de coordenadora de uma revista, havia um espaço para um artigo de opinião para quem ocupasse aquele cargo. Mas quando chegou a minha vez o espaço desapareceu. A mensagem que eu fiquei é que não queriam o meu rosto naquela publicação. Qualquer pessoa negra o resultado seria esse.
Naquela altura eu só conseguia sentir dor. Se eu não tivesse criado a Afrolink eu continuaria a ser mais uma negra invisibilizada.
Eu era uma adolescente quando Alcindo Monteiro foi assassinado, em 1995. Eu percebi que poderia morrer por ser negra. Isso ficou muito claro para mim.
Em que medida o mercado de trabalho português perpetua a lógica colonial, relegando pessoas negras a posições subalternizadas?
A Afrolink começou de um grupo fechado no Facebook, uma das coisas que perguntei aos integrantes é se a cor de pele tinha influenciado no acesso e progressão empresarial. Com esse questionário foi evidente que a barreira estava lá.
A barreira está lá quando enviamos um currículo com fotografia e vemos se há ou não respostas.
Outro viés que se encontra na seleção é a morada. Quando se entende que morar na Cova da Moura é problemático porque não se quer qualquer tipo de proximidade com o lugar vai se retirar aquela pessoa. Há logo uma pré-seleção que coloca as pessoas negras de lado, seja pela fotografia, pelo nome não ser português, pela morada em um bairro de maioria negra.
Há uma série de camadas que tornam difícil a pessoa negra ocupar o espaço no mercado de trabalho que seja adequada a aquelas que são as suas competências.
Você mencionou que o caso da Esquadra de Alfragide* marcou um antes e depois na discussão sobre racismo. Pode explicar como a atenção internacional influenciou a percepção e o tratamento do racismo em Portugal?
Os media continuam enviesados em vários níveis. Precisou que um órgão de comunicação social estrangeiro, como a BBC, trouxesse em letras garrafais que existe racismo em Portugal, sem hesitar nas palavras, para que houvesse uma reação. É como se estivessem a dizer: na sua casa aconteceu isso. Não pode ignorar. Tem que fazer alguma coisa.
O que mudou?
Mudou a impossibilidade de ignorar o caso de Alfragide. A mesma coisa aconteceu no caso Giovani, um cabo-verdiano que morreu em Bragança e a história do ataque que ele sofreu passou completamente despercebida [na imprensa portuguesa] até sair em um jornal estrangeiro. Isso é recorrente.
De que forma a cobertura midiática em Portugal falha na discussão sobre racismo?
A cobertura midiática deveria focar em promover conhecimento. Não existe literacia racial em Portugal. As pessoas não sabem o que é racismo estrutural. Há um excesso de comentários na televisão e não temos pessoas negras lá. Lembra da varíola dos macacos?
Sem motivo qualquer que justificasse, os media portugueses usaram imagens de mãos negras para ilustrar a doença. Ou seja: pessoas negras associadas a doença.
Depois, não se interessa em cobrir manifestações antirracistas. E, quando há, até aí se nota viés. A cobertura midiática tem falhado em todos os níveis.
Existem propostas para mudar o currículo escolar de forma a abordar mais criticamente a história colonial?
Há propostas completas lançadas ao governo português no sentido de Portugal repensar a forma como ensina a história. O governo não está ignorante, não é uma questão de desconhecimento. O que há é distanciamento em relação à escravatura que não vemos em relação ao holocausto.
As pessoas conseguem se comover com o holocausto e não se incomodam com pedidos de desculpa ou medidas de reparação que a Alemanha assumiu depois da Segunda Guerra Mundial.
Na Alemanha existem políticas de memória. Aconteceu e não precisamos esquecer. Não é um tabu, não foi varrido para debaixo do tapete. Em Portugal, não. Como se falar desse passado significasse condenar tudo. E não é uma questão de culpa, mas de responsabilidade, de reconhecer que ainda hoje nós sofremos os efeitos dessa história.
*Na noite de 25 de fevereiro de 2015, seis moradores da Cova da Moura (bairro em Amadora, Área Metropolitana de Lisboa) foram agredidos por policiais nas instalações da PSP em Alfragide. Dezessete policiais foram acusados pelo Ministério Público. Foram condenados oito. Apenas um cumpriu pena efetiva, de um ano e seis meses.