O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, discursa durante o encontro com a comunidade portuguesa na Associação Portuguesa. (Arquivo) Crédito: Manuel de Almeida, Lusa
Técnico por um dia: quando o presidente Marcelo comandou a seleção de Portugal contra o Brasil —e perdeu
Com 26 anos, o 'treinador' Marcelo Rebelo de Sousa, viveu em 1975 uma das passagens mais inusitadas da sua longa vida pública
12/10/2024 às 13:17
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Presidente da República, ministro, deputado municipal, deputado metropolitano, vereador, líder partidário, jurista, jornalista, professor, comentarista e, não menos importante (ou curioso), treinador de futebol. Por emocionantes e conturbados 20 minutos, em 1975, Marcelo Rebelo de Sousa, então com 26 anos, viveu do outro lado do Oceano Atlântico uma das mais inusitadas passagens da sua longa vida pública —política e, sim, esportiva.
Sua missão, por chamado da Federação Portuguesa de Futebol, era chefiar a delegação nacional em um amistoso especial no Brasil contra a Seleção brasileira. Na ocasião, grandes estrelas do futebol compunham o time verde e amarelo.
Listavam-se no panteão Emerson Leão, Luiz Pereira, Piazza, Leivinha, Rivellino, Ademir da Guia, Jairzinho, Paulo Cezar Caju e Reinaldo. O treinador do Brasil era ninguém menos que Mário Jorge Lobo Zagallo, que já naquele momento tinha dois títulos de campeão do mundo como jogador (1958 e 1962) e um, atuando como técnico (1970).
Olhando em retrospectiva, perder para o time dos sonhos do Brasil poderia nem ser tão ruim para o que vi ria ser o presidente da República. Mas não foi bem isso o que ocorreu. O encontro nos gramados entre Brasil e Portugal marcava a inauguração do Estádio Serra Dourada, em Goiânia, construído pela ditadura, que tinha na sua Presidência o general Emílio Garrastazu Médici.
A ideia dos militares brasileiros era mostrar ao mundo, sobretudo ao país irmão, a modernidade que acreditavam estar construindo no país sul-americano. Para isso, achavam, nada como mostrar um novo aparelho esportivo, tendo na recepção uma das melhores seleções do planeta.
A imprensa, sabiam, se não falasse bem, também mal não falaria. Escreveu o jornalista Luís Carlos Mello na ocasião: “Por que um estádio para mais de 75 mil pessoas? Qual é a razão para um investimento tão alto, quando, no interior do Estado de Goiás, as estradas são deficientes, o atendimento médico é precário, faltam escolas e a mesa do trabalhador não é farta?”
Ele mesmo respondeu, jogando as palavras que sabia serem as que os militares queriam ler: “É uma obra magnífica. Imponente, mas simples. Totalmente humana. O concreto armado despojado de sua frieza. Alegria do povo. O esporte, essencialmente o futebol, tem esse impressionante dom de magnetizar o público e de fazer com que exteriorizem todos os seus sentimentos.
É o puro êxtase contra a passageira frustração”, exaltou, arrematando: “O momento não é para discutir o mérito da construção. Nem apoiar as críticas ou se deixar influen - ciar pelos elogios. O que vale ressaltar é a nossa maravilhosa história.”
Uma convocação às pressas
O Brasil, sabe o leitor, vivia o período do “ame-o ou deixe-o”. Para início de conversa, o jogo foi marcado às pressas e com pouca divulgação pela imprensa especializada. Os convidados europeus foram convocados quase de última hora, depois de um rápido contato entre a ditadura brasileira e o novo governo português, recém-chegado após a Revolução dos Cravos. O primeiro-ministro era Vasco Gonçalves.
No futebol, àquela altura, a base da seleção das Quinas era formada majoritariamente por jogadores do Benfica, time bicampeão europeu na década anterior. Na semana do amistoso, a equipe encarnada havia viajado para a Holanda (Países Baixos), por conta de um duelo decisivo pela Taça das Taças, uma espécie de embrião da Liga dos Campeões.
O time empatou em 0 a 0 com o PSV Eindhoven, no dia 5 de março, uma quarta, e logo no dia seguinte os relacionados por Portugal seguiram viagem para o Brasil. Ou seja, os benfiquistas não chegaram a voltar para casa. De Amsterdam seguiram para o Rio de Janeiro e, de lá, para Goiânia.
Enquanto parte da comitiva portuguesa estava a caminho do Brasil, os responsáveis brasileiros pela organização do amistoso, quase todos militares, decidiram mudar a composição do time da casa. A Seleção brasileira deveria dar lugar a um time goiano, com destaque para a participação de jogadores do Goiás, como Macalé, Paghetti, Lincoln, Raimundinho e Tuíra —quase todos completamente desconhecidos do público.
A decisão política de trocar toda a estrutura técnica da Seleção brasileira, que cinco anos antes, em 1970, havia conquistado o tricampeonato mundial no México, revoltou os portugueses. Do goleiro ao atacante, do treinador ao primeiro-ministro, ninguém gostou.
Encararam a surpresa —com razão— como desrespeito. Entretanto, até pelo ambiente pouco tranquilo de uma ditadura, não houve maior reboliço. Não naquele momento. Guardaram para si o incômodo, apesar das inúmeras tentativas da imprensa portuguesa de boicotar a cobertura jornalística do evento.
“A ditadura no Brasil vivia, acredito eu, a sua fase mais complicada e crítica. Era para ser um jogo amigável, um amistoso, mas não foi nada disso, sobretudo pela situação política brasileira”, descreveu em 2019 Marcelo Rebelo de Sousa, numa entrevista ao programa Cultura Tática, do canal SportTV de Portugal.
A escalação
Assim, em 9 de março de 1975, um domingo de muito calor na capital goiana, o jovem e promissor Marcelo, no papel de “vogal” (termo correto em Portugal para a função de chefe de delegação futeblística), chegava à tribuna de honra do Serra Dourada, de onde assistiria ao jogo ao lado de presidente brasileiro Emílio Médici e de outras figuras políticas de relevância, como o ministro brasileiro Jarbas Passarinho, o governador goiano Leonino Caiado (primo do atual governador do estado), e o embaixador português Vasco Futscher Pereira.
Também presente ao evento estava o presidente da Fifa, o brasileiro João Havelange. A seleção portuguesa, comandada pelo histórico e folclórico técnico José Maria Pedroto, entrou em campo com Vítor Damas (Sporting), Artur Correia (Benfica), Humberto Coelho (Benfica), Carlos Alhinho (Sporting), Pietra (Benfica), Octávio (Porto), João Alves (Boavista), Toni (Benfica), Nené (Benfica), Samuel Fraguito (Sporting) e Fernando Gomes (Porto).
Já a seleção goiana se alinhou com Nílson (Goiânia), Frasson (Vila Nova), Macalé (Goiás), Alexandre Neto (Goiás), Lula (Goiânia), Matinha (Goiás), Piorra (Atlético Goianiense), Paghetti (Goiás), Fernandinho (Vila Nova), Lincoln (Goiás) e Raimundinho (Goiás).
Paulo Gonçalves, então no Goiás, foi emprestado para dirigir o time. Recém-contratado pelo New York Cosmos para difundir o futebol nos Estados Unidos, Pelé compareceu ao confronto festivo, mas não propriamente para reforçar a seleção goiana (ou brasileira) —ele havia se despedido oficialmente da seleção principal, com todas as honras e glórias possíveis, em julho de 1971.
Ele, porém, fora convidado para dar o pontapé inicial e assistir ao jogo de um dos camarotes. Antes, porém, Pelé e os demais tiveram de ouvir o discurso do governador Leonino Caiado, que desceu ao campo para promover a inauguração. Curiosidade: a família Caiado se mantém no poder direta ou indiretamente no Goiás desde meados do século 19.
Macalé, defensor do time brasileiro na partida e hoje com 78 anos, ainda lembra da emoção que sentiu naquele jogo. Segundo ele, se tornou um dos momentos inesquecíveis da sua vida. Quando criança, disse à BRASIL JÁ, o jogador sonhava em atuar no Maracanã, mas jogar no Serra Dourada contra a seleção portuguesa lhe foi um grande presente da vida.
“Quando entrei em campo para o jogo contra a seleção de Portugal, tive uma emoção muito forte”, lembrou, acrescentando: “Precisei controlar a respiração e pensar exclusivamente no jogo. Fui o primeiro jogador brasileiro a tocar na bola naquela partida. Tenho guardada até hoje a camisa da seleção goiana.”
A exemplo de Marcelo Rebelo de Sousa, o jogador nunca esqueceu daquela partida. Portugal abriu o placar. O primeiro gol da história do estádio foi marcado por Octávio, logo aos dez minutos do primeiro tempo. A resposta brasileira (por meio do time goiano) surgiu aos 26 minutos, nos pés da referência do futebol do estado: Lincoln.
Um empate parcial que, naquele momento, tinha o sabor amargo, visto que, nas arquibancadas, a ansiedade e o nervosismo tomavam conta dos 76 718 espectadores. O empate estava fora dos planos militares. O autor do gol que empatou a partida analisou recentemente o início daquele jogo.
“A nossa seleção era completamente inferior tecnicamente. Não tinha comparação. Foi um jogo duro para nós, tanto é que os portugueses saíram na frente, e fizeram isso com propriedade. Não éramos acostumados ao Serra Dourada, às suas dimensões. Ainda era tudo muito diferente. O adversário se adaptou rapidamente e começou melhor o jogo.”
Segundo ele, porém, mesmo diante da adversidade, restava ir para cima do adversário: “Fizemos pela nossa honra”. Lincoln de Freitas Neves, que ficou conhecido o Leão da Serra, era o craque do lado brasileiro. Atacante de área e goleador nato.
Coincidentemente ou não, pouco tempo depois trocou o Goiás pelo Belenenses, um dos clubes mais tradicionais de Portugal —permaneceu em território português por quatro temporadas.
Hora da virada
No segundo tempo, já com mudanças no time, a seleção goiana treinada pelo mineiro Paulo Gonçalves cresceu de produção. Foi para cima. Passou a incomodar, a “morder os calcanhares” do rival, como se diz em Portugal. Mas aos 25 minutos o clima do amistoso mudou por completo. Nené, do lado dos portugueses, se machucou e precisou sair de campo.
O técnico José Maria Pedroto não pensou duas vezes: empurrou Adelino Teixeira (Porto) para dentro das quatro linhas. A equipe das Quinas, porém, já havia feito as três substituições (Barros e Victor Martins, ambos do Benfica, e Manuel Fernandes, do Sporting) permitidas pela Fifa —hoje, a entidade máxima do futebol internacional aceita até cinco trocas no decorrer do tempo regulamentar (noventa minutos).
O consagrado árbitro brasileiro Armando Marques, que apitou as copas de 1966 e 1974, não percebeu a gafe e deixou a partida prosseguir normalmente. Os convidados jogaram por cerca de dez minutos de forma irregular. O público, no entanto, notou a falha. Os protestos começaram de forma tímida, mas logo tomaram conta de todo o estádio. Vaias e mais vaias. Xingamentos de todos os tipos.
Os jogadores brasileiros entraram no coro e tumultuaram ainda mais o ambiente. Assim que a arbitragem percebeu o erro, interrompeu a partida. A barafunda estava instalada. Gritaria daqui e dali. Sempre muito enérgico, Pedroto esbravejou contra tudo e contra todos.
Sobrou até para os auxiliares e bandeirinhas José Muniz Brandão e João Antônio do Nascimento. Sem grandes surpresas, o técnico português acabou por receber o cartão vermelho. Foi expulso. Ao invés de sair de campo, reuniu os seus jogadores e ordenou que todos fossem direto para o vestiário. Não queria mais jogar. Falou-se em pegar o caminho do aeroporto da cidade.
Neste momento que a carreira pública de Marcelo Rebelo de Sousa ganhou um novo capítulo —tanto na política como no esporte. Constrangido com o que se passava dentro de campo, sobretudo porque estava sentado a poucos metros de Médici, levantou-se da cadeira e desceu correndo para o vestiário. Ignorou o policiamento e os torcedores brasileiros mais chateados e passou por cima das placas de publicidade.
Foi direto ao encontro da comissão técnica da equipe portuguesa. Com espírito apaziguador e, ao mesmo tempo, assertivo, Marcelo peitou José Maria Pedroto, famoso por ter forte personalidade —era um dos nomes mais vitoriosos da história do futebol português, tendo conquistado, com o Porto, inúmeros títulos do campeonato nacional, seja como jogador ou como treinador.
Ambos discutiram por cerca de quinze minutos. Falaram sobre a eventual imagem arranhada com que Portugal deixaria no Brasil e, obviamente, o dinheiro que a Federação Portuguesa de Futebol deixaria de ganhar, visto que estavam diante de uma possível quebra de contrato. A ponderação venceu.
Ao lado do selecionador Abílio Rodrigues, uma espécie de “gerente” da federação portuguesa, o jovem político em ascensão resolveu assumir as rédeas da seleção. Mandou para o hotel todos os membros da comissão técnica, incluindo o treinador principal, e puxou para si a responsabilidade de comandar o time durante o período que ainda restava de jogo: cerca de vinte minutos.
Apesar de todos os registros da época, especialmente dos contos difundidos até os dias de hoje por Marcelo Rebelo de Sousa em jantares e encontros informais com amigos e familiares, a versão brasileira do confuso jogo de 1975 é mais leve.
“Daquilo que me lembro, não houve assim uma grande confusão. Foi um jogo marcado por muita festa dos torcedores goianos, muita confratenização entre brasileiros e portugueses. Me recordo de abraçar alguns dos meus adversários quando a partida terminou. Ali no gramado, conversei bastante com o Humberto Coelho e o João Alves, que haviam feito uma belíssima partida. Muitos anos depois, participei ainda de um evento com o Octávio, autor do gol português, no próprio Serra Dourada. Rimos bastante”, recordou Macalé.
Um apaixonado pelo esporte
Marcelo, verdade seja dita, sempre foi um apaixonado por futebol. É um torcedor ferrenho do Braga e um bom e velho analista de boteco. Ele também é —os portugueses o sabem— um exímio contador de histórias, independentemente do tema. Mas nunca teve qualquer experiência profissional com a bola.
Ainda assim, preferiu não decepcionar os milhares presentes no Serra Dourada, fossem eles de direita ou de esquerda, conservadores ou liberais, militares ou simples torcedores de ocasião —todos foram fundamentais, aliás, para a receita da partida: quase um milhão de cruzeiros (muito dinheiro, para a época).
“Sempre enxerguei beleza no futebol. O futebol dos meus tempos de jovem era muito diferente do futebol dos tempos de hoje”, declarou o presidente de Portugal na mesma entrevista à SportTV, em 2019. Ele praticou seriamente vôlei, basquete, tênis e natação, mas nunca quis se aventurar muito no futebol.
Com Marcelo Rebelo de Sousa treinador por um dia, a seleção portuguesa, mesmo sem qualquer vontade de continuar a jogar, deixou o vestiário e voltou para o campo. Todos vaiados, obviamente. Diante de tamanha hostilidade e apáticos por opção, os portugueses acabaram por sofrer o gol da virada.
Aos 37 minutos, Tuíra, que momentos antes de todo o caos havia entrado no lugar de Raimundinho, afundou as redes de Vítor Damas e conseguiu o 2 a 1. Fez explodir de alegria as arquibancadas. Justiça seja feita, Marcelo não teve tempo para fazer grandes mudanças na seleção. Sequer eram permitidas novas substituições na equipe.
Em alguns momentos, ele se levantou do banco de reservas para orientar os seus jogadores. Tudo de forma bastante tímida. Deixou o trabalho árduo para o auxiliar Abílio Rodrigues, mais velho, com 44 anos. No fundo, a dupla estava mesmo ansiosa pelo apito final.
“Perder para a seleção brasileira é sempre ruim. Agora, perder para a seleção goiana, com todo respeito, é ainda pior. A nossa ideia era repetir o feito da seleção portuguesa de 1966, que eliminou o Brasil na Copa do Mundo da Inglaterra, ainda na fase de grupos [triunfo por 3 a 1]”, contou Toni, hoje com 77 anos, em conversa com a BRASIL JÁ.
“Foi uma partida muito estranha, com diversos acontecimentos bizarros. Porém, isso aconteceu há quase cinquenta anos, não me lembro de muita coisa. Acho que o único português que se recorda bem daquele dia é o próprio presidente Marcelo, que, sempre que me encontra, fala sobre esse amistoso”, brincou.
Ao longo das últimas décadas, Marcelo Rebelo de Sousa, atualmente com 75 anos, visitou o Brasil em outras oportunidades. Ora por lazer, ora por questões políticas. Nunca mais como projeto inacabado de treinador de futebol. Seguramente, o futebol português agradeceu.
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