Clube do livro, sarau de poesia, encontros literários. Essas e outras atividades passaram a fazer parte da rotina de quem gosta de ler e até de quem nem sabia a satisfação que uma boa leitura pode trazer.
Uns optam por livros digitais, outros ficam com o físico. Cada qual à sua maneira, o gosto pela leitura segue indelével —para o bem de todo mundo.
Por outro lado, infelizmente, o mercado literário tem registrado uma queda no número de livros publicados. Segundo dados da Biblioteca Nacional de Portugal, divulgados em dezembro de 2024, foram editados 12 299 livros impressos em 2023, uma redução de 4,3% em relação ao ano anterior.
Os desafios enfrentados por escritores e editoras são significativos. Para entender melhor o mercado editorial e suas obras, conversei com dois autores.
E começo pelo premiado “Não há pássaros aqui” de Victor Vidal. O título foi o vencedor do Prêmio Leya 2023 e foi publicado em Portugal em 2024 pela mesma editora Leya. No Brasil, a história chega neste 2025 pela Editora Todavia
Victor, um carioca de 33 anos, é doutor em História da Arte e pela primeira vez não está em sala de aula. Ele divide seu tempo atualmente entre a paixão da escrita e o trabalho com finalização de artes e estampas para a marca carioca Farm.
Confira trecho da minha conversa com Victor Vidal:
Como foi a concepção de “Não há pássaros aqui”?
Esse livro começou de maneira muito despretensiosa, com imagens que eu já tinha nos pensamentos há muito tempo. Sempre quis escrever uma história de uma mãe que some, de crianças que fogem para ir à praia, de uma carta que é encontrada num livro. Eram imagens recorrentes.
Mas eu achava que virariam contos, coisas pequenas, até que fiz uma viagem para Amsterdã, onde visitei o anexo secreto em que a Anne Frank se escondeu com a família dela durante a Segunda Guerra Mundial. Essa visita foi muito marcante porque fiquei impressionado com a sensação de vazio que aquele anexo transmitia.
Não havia móveis lá, e tinha uma janela que dava um recorte muito pequeno do céu. Fiquei muito impactado com essa visita, imaginando o que teria acontecido com ela se tivesse sobrevivido. Como ela carregaria essa experiência de ter ficado dois anos enclausurada? Essa imagem ficou em meu pensamento.
E é assim que decide começar o livro?
Eu escrevi boa parte do livro naquele período mais intenso da pandemia, em 2020. Era uma escrita que eu fazia enquanto eu estava procrastinando para terminar a tese [do doutorado em História da Arte]. Eu deveria estar escrevendo a tese do doutorado, mas estava brincando com os personagens.
Uma brincadeira que deu certo.
Pois é. O Prêmio Leya.
Quem era o Victor Vidal até lançar seu livro de estreia?
Toda a minha trajetória está ligada à academia e esse é o primeiro ano em que eu estou sem estudar formalmente, porque, desde que eu me entendo por gente, estou em alguma instituição, estudando, fazendo a graduação, depois o mestrado, depois o doutorado.
A literatura era um sonho muito íntimo. Sempre escrevi desde muito pequeno, mas nunca dividi com ninguém, nada. Não mostrava as coisas que eu escrevia nem falava para as pessoas que eu queria publicar um livro. Então, peguei muitas pessoas de surpresa, até amigos. Era algo que eu guardava para mim.
Mas inscreveu o livro para a publicação?
Eu me inscrevi muito de maneira casual. Todo mundo que se inscreve num prêmio já espera ganhar, de alguma maneira. Mas eu achava que eu não tinha a menor chance.
O livro fala sobre as questões que a gente traz na vida adulta, dos comportamentos na infância. Para você, e escrita foi terapêutica?
Não, terapêutico não. Em alguns momentos foi um pouco difícil, porque, embora não tenha passado por nada semelhante ao que os personagens passavam, eu estava o tempo todo vendo como esses temas e essas questões se refletiam em mim. Durante toda a escrita, eu pensava muito na minha infância, na relação com a minha mãe, com o meu pai.
Mas acho que não diria terapêutico. Porque as minhas feridas da infância continuam aqui presentes. Mas foi um momento de me conhecer mais, de entender algumas coisas com uma profundidade maior sobre mim. Eu não tenho contato com o meu pai. Ele nos abandonou, a mim e a meu irmão, quando a gente era muito pequeno, e eu achava que isso não tinha efeito na minha vida.
Mas toda vez que eu escrevia sobre o pai da personagem, que também as abandonava, eu me sentia muito afetado. Foi nesse processo de pensar sobre a relação da personagem com o pai dela que eu fiquei pensando na minha relação com o meu pai. Mas eu jamais acharia que escrever um livro seria um substituto para a terapia.
De forma alguma. É terapêutico, mas não é terapia. São coisas distintas. O terapêutico é aquilo que nos faz elaborar algumas questões, a terapia trata.
É, então talvez tenha sido [terapêutico] sim. Me permitir elaborar mais sobre as minhas questões. Mas o que realmente foi mais difícil para mim de escrever, tanto de uma forma mais técnica, em termos narrativos, quanto pessoal, era a questão da raiva da personagem. Porque é uma personagem muito raivosa, agressiva. Eu não sou dessa maneira e me colocar nesse lugar foi difícil para criar as cenas.
O que te interessa na cultura em geral e, obviamente, na literatura?
Tem três autoras que foram muito fundamentais para a minha escrita. A Lygia Fagundes Telles [foi uma delas]. Quando eu li “Ciranda de Pedra” foi um acontecimento na minha vida. Foi um livro que me marcou muito. Eu tinha 18 anos e estava voltando de uma aula da faculdade e tinha uma vendinha de livros usados. Comprei uma edição horrível lá e voltando de ônibus eu li as primeiras páginas e já fiquei muito impressionado com a densidade do texto e com a maneira como autora explorava a interioridade dos personagens.
A segunda autora que foi para mim um divisor de águas foi Alice Munro, uma canadense, que há pouco tempo saiu uma reportagem esquisita sobre ela. A filha dela contando umas coisas bem terríveis sobre a relação dela com a mãe. E a outra escritora é a Banana Yoshimoto, que é japonesa com uma literatura mais jovem, mais adolescente, mas ela brinca muito com essa ideia do mágico e do real.
Já está rascunhando outro livro?
Eu já estou trabalhando em um próximo romance. Mas eu acho que ainda deve demorar mais um ano, talvez, para ele ficar pronto. Eu quero cada vez mais investir nessa área. Eu quero cada vez mais poder ocupar meu tempo com essa atividade. E eu sempre escrevi muito. Então o meu plano para os próximos meses e anos é continuar escrevendo bastante.
E o que será o próximo livro?
Continua girando em torno de questões semelhantes, como relações familiares, o vazio, a morte. São temas que me interessam, mas eles são conjugados de maneiras completamente diferentes.
Um processo independente
Outro livro lançado em Portugal e no Brasil em 2024 e uma ótima leitura para começar o ano é “O Apartamento", do jornalista Raphael Lima.
A obra é um conjunto de contos que convida o leitor a uma viagem por lugares e pessoas. O exemplar reúne dezenas de contos ambientados na Europa, na América do Sul ou em lugar nenhum.
Em entrevista, Raphael Lima fala um pouco sobre o livro e os desafios de um escritor independente:
O que é “O apartamento”?
O apartamento começou como uma tentativa minha de escrever algo longo, uma novela ou um romance. Eu sempre escrevia conto e dessa vez me sentei e falei: agora quero escrever algo maior. E escrevi a novela “O Apartamento”. É um conto/novela. É um conto maior do que o normal porque ele tem mais ou menos cem páginas.
E que diferença sentiu?
Foi a minha primeira tentativa de escrever um livro como um todo. Eu achei que precisava desenvolver um pouco mais os personagens. Para isso, eu optei por juntar outros contos que eu já tinha escrito e escrever algumas coisas novas para acrescentar no livro.
É uma tentativa de romance permanecendo um livro de contos. Eu tinha lançado “Muitos São Chamados” em 2020, sendo este o meu segundo livro. Acho que o próximo vai ser um romance por si só.
E qual será o próximo?
Se passa no Rio de Janeiro. Tem a ver um pouco com o que eu vi trabalhando como jornalista, cobrindo polícia para um jornal impresso no início dos anos 2000. Ainda não está fechado. Eu tenho mais ou menos metade do livro escrito. Eu parei de escrever porque minha filha nasceu [Raphael é pai de Stella, de 1 ano].
Como foi a escrita de “O apartamento”?
Eu escrevi durante a pandemia. A gente ainda trabalhava de casa, e eu parei e falei: “agora vou escrever esse livro”. Sentei-me durante umas duas, três semanas, escrevi e finalizei. Depois dali uns dois, três meses, eu peguei e comecei a trabalhar em cima do que já estava pronto.
É uma publicação independente. Como foi para publicar?
O processo de livro independente é muito chato depois que o livro está pronto. Dessa vez eu nem fiz tudo sozinho, porque eu tive uma editora para reler, revisar, apontar o que eu precisava mudar depois que eu escrevi, e tive alguém que fez o design do livro, o projeto gráfico. O seu trabalho de escrita está pronto, mas aí você tem que fazer outros mil trabalhos, como divulgar, vender. O ganho é meu, mas eu tenho que arriscar no lançamento. Uma nova modalidade é tentar fazer uma publicação, porque as pessoas, às vezes, ficam em uma fila, esperando a editora acionar o projeto, acionar o livro. Hoje tem muitas editoras que elas cobram para lançar seu livro. Eu não gosto desse processo, porque acabam lançando qualquer coisa. Então, prefiro consultar alguém externo, um editor, alguém que trabalhe com isso. A pessoa vê o livro, faz o trabalho dela e eu pago o trabalho de edição. Se eu não conseguir uma editora eu faço esse lançamento. Um escritor para conseguir lançar o seu trabalho, mesmo que de forma independente, precisa ter um pouco de coragem.
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