Marcha xenofóbica em Lisboa, 3 de fevereiro de 2024. Crédito: Stefani Costa, BRASIL JÁ

Marcha xenofóbica em Lisboa, 3 de fevereiro de 2024. Crédito: Stefani Costa, BRASIL JÁ

A escalada da ameaça extremista em Portugal

Atos truculentos da extrema direita ameaçam fazer do país um lugar hostil

08/10/2024 às 11:24 | 6 min de leitura
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Não é de hoje que movimentos extremistas atuam de forma violenta em Portugal —e principalmente contra imigrantes. Nesta segunda (7), mais um episódio truculento contra estrangeiros escancarou a escalada de ameaças contra quem vem de fora. Militantes de um grupo extremista interditaram um posto de atendimento da Aima afirmando que o espaço não será reaberto enquanto os direitos básicos de portugueses não forem garantidos. 

O argumento dos radicais é uma falácia. Cita-se em cartazes colados na porta da loja Aima que a "agência ficará encerrada enquanto portugueses não tiverem saúde, segurança, habitação, emprego e educação". 

A polêmica é mentirosa porque imigrantes pagam impostos e, portanto (mas não só por isso), a eles devem ser garantidos os mesmos direitos que a outros cidadãos. Os estrangeiros sofrem na mesma medida —ou mais— com a carência desses serviços públicos.

Crimes de ódio em Portugal aumentaram 38% em 2023

No início de agosto, as discussões sobre o que a Justiça portuguesa tem feito (ou não tem feito) para frear os extremistas ganharam espaço no debate nacional. Isso depois que reportagem do New York Times mostrou como extremistas ameaçam a vida de imigrantes em Portugal. 

Após a publicação, o canal no YouTube do grupo neonazista 1143 foi suspenso. Desde então, na própria imprensa portuguesa analistas têm se perguntado onde está o Ministério Público, que deveria ser a ponta de lança no zelo dos princípios democráticos.

Apesar das denúncias e de o Ministério Público confirmar a existência de investigações em curso, faltam ações práticas contra os grupos radicais. Um exemplo disso foi denunciado à BRASIL JÁ pela ex-eurodeputada e ex-candidata à Presidência, Ana Gomes, em fevereiro deste ano. Na época, Gomes cobrou da Procuradoria-Geral da República a análise da denúncia feita por ela acusando o Chega de ser ilegal.

O caso não foi à frente e, a então procuradora-geral da República responsável pela representação, Lucília Gago, já nem está mais no cargo. Passaram-se os meses e, com as eleições parlamentares, o partido quadruplicou o seu número de representantes na Assembleia da República. 

Há duas semanas, o Chega organizou uma marcha contra a imigração. E embora parte da imprensa trate como normal essas manifestações, no entendimento de representante da Ordem dos Advogados protestos xenofóbicos são ilegais. 

Também em fevereiro, quando então integrantes do 1143 saíram às ruas de Lisboa em protesto islamofóbico, empunhando tochas e fazendo saudações nazistas, a presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem, Cristina Borges Pinho, disse à BRASIL JÁ que o caso se tratava de crime de ódio

Ódio crescente

De lá para cá, o movimento de radicais de direita está em rota ascendente. E se nas ruas eles se permitem ver, na internet é onde os extremistas conseguem mais adeptos por meio de publicações no X (antigo Twitter), Facebook, TikTok e canais no Telegram. Nas páginas, muitas delas alimentadas por perfis anônimos, estão notícias falsas travestidas de ataques racistas, xenofóbicos, anti-imigração, islamofóbicos e misóginos.

Ainda assim, apesar da gravidade da situação, o discurso é normalizado por segmentos da Justiça. Em junho, durante um café com jornalistas na sede do Conselho Superior da Magistratura, em que a BRASIL JÁ esteve, o vice-presidente do órgão, Luís Miguel Ferreira de Azevedo Mendes, comentou ser direito do neonazista Mário Machado, líder de um grupo neonazista 1143, se manifestar pelas cidades de Portugal.

Machado foi condenado em maio a dois anos e dez meses de prisão por incitação ao ódio e à violência contra mulheres de esquerda —outros crimes parecidos também já se atribuíram ao neonazista nas últimas três décadas.

Perguntou-se a Ferreira de Azevedo se não era constrangedor à Justiça que um neonazista condenado continuasse a organizar manifestações de cunho violento. Para o magistrado, porém, a Mário Machado deveria ser assegurado o direito constitucional de se manifestar —um entendimento distinto, por exemplo, da representante da Ordem dos Advogados que mencionamos mais acima. 

O vice-presidente do Conselho citou o caso do ex-presidente e candidato a presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “Se não há nenhuma limitação do Tribunal Constitucional aos direitos políticos, ele [Mário Machado] pode organizar manifestações. O [Donald] Trump também já foi condenado e continua a ser candidato à Presidência”, afirmou o juiz.

Ferreira de Azevedo podia não saber, mas no dia 10 daquele mês, quando é comemorado o Dia de Portugal, o líder do Grupo 1143 organizou uma manifestação com mensagens islamofóbicas e anti-imigração em frente ao Padrão dos Descobrimentos, monumento em Lisboa que exalta o passado colonialista português.

A data também é lembrada por ter sido o dia em que, em 1995, morreu Alcindo Monteiro, jovem português, nascido em Cabo Verde, assassinado pelo grupo neonazista Hammerskins, do qual Mário Machado era membro à época.

No dia do protesto islamofóbico e anti-imigração, o Machado partiu para cima de um homem que, aparentemente, estava ao lado da contra-manifestação organizada por movimentos antifascistas. Assim como em marchas anteriores, a Polícia de Segurança Pública, a PSP, foi criticada por ter escoltado o grupo extremista e agido com truculência contra as pessoas que tentavam impedir as saudações supremacistas.

Polícia de Segurança Pública. Crédito: Divulgação

Segredo de Justiça e cobrança

Em 14 de agosto, a BRASIL JÁ enviou perguntas ao Ministério Público mencionando especificamente o Grupo 1143. Como citado mais acima, oficialmente o órgão confirma que há investigações em curso, mas alega que o processo corre em segredo de Justiça. A instituição não respondeu por qual motivo o canal do movimento extremista só foi retirado do ar após a reportagem do New York Times.

No dia anterior, logo após a suspensão do canal no YouTube do 1143, o Bloco de Esquerda cobrou do Ministério da Administração Interna uma resposta a respeito de como será feita a dissolução das mais de vinte células regionais criadas pelo grupo extremista em solo português. 

Fabian Figueiredo, líder do Bloco no Parlamento, também quis saber do Ministério da Defesa Nacional sobre a possível participação de membros do Exército no tal grupo.

Mulher faz saudação nazista durante marcha de extrema-direita em Lisboa. Crédito: Stefani Costa, BRASIL JÁ

Segundo o deputado, é preciso monitorar a "continuidade da atividade" de uma "organização contrária aos princípios constitucionais que se dedica à prática de crimes". A Constituição portuguesa estabelece que não são permitidas organizações racistas ou de ideologia fascista no país. 

Ainda assim, o Ministério de Administração Interna afirmou que enquanto a investigação realizada pelo Departamento Penal de Investigação Criminal não for concluída, o governo não pretende suspender nenhuma das redes criadas por Mário Machado na internet.

“Neste momento não poderei fazer mais declarações, a não ser dizer que estamos atentos”, disse a ministra Margarida Blasco, após solicitar a abertura de um inquérito à Inspeção Geral da Administração Interna [IGAI] sobre a participação de membros das forças de segurança em grupos extremistas

Misoginia e desinformação como armas

A professora Renata Cambra, que venceu o processo contra Mário Machado e outro extremista por incitação ao ódio e a violência nas redes sociais, falou à BRASIL JÁ que a sua vitória foi importante para todas as mulheres. 

“O meu caso está longe de ser individual. Quando avancei com a queixa, no início de 2022, podia ser menos evidente que estes indivíduos atuam de forma organizada e violenta, mas hoje já ninguém tem dúvidas disso nem das motivações ideológicas fascistas que os movem”, disse.

A dirigente do Movimento Alternativa Socialista afirmou que a condenação de Machado a mais de dois anos de prisão impacta e ajuda a desfazer o discurso misógino perpetrado por esses grupos. 

“As mensagens misóginas nas redes não podem ser vistas como piada inofensiva, quando se trata do incitamento a uma forma extremamente grave de violência por parte de neonazis que integram uma organização paramilitar com todo um cadastro de atos violentos.”

Afora os ataques direcionados a determinadas pessoas, como no caso de Renata Cambra, as organizações também se valem da propagação de desinformação para cooptar apoiadores e reforçar mentiras. 

Boa parte do que é publicado nessas redes tem lastro em notícias falsas, como no caso do jovem brasileiro esfaqueado em Carcavelos, uma região de praias em Cascais, na Grande Lisboa.

Mesmo com a confirmação da Polícia Judiciária de que o criminoso é um homem português de 23 anos, um perfil extremista com seguidores do 1143 espalhou (falsamente, repita-se) que o responsável pela morte do brasileiro era um imigrante envolvido com "guangues africanas".

Mais grupos extremistas

Há algum tempo o 1143 não está sozinho na disseminação do ódio. Participa também da propagação de mentiras e discursos anti-imigrantes o grupo Habeas Corpus, que afirma se tratar de uma instituição sem fins lucrativos atuando em prol dos Direitos Humanos. 

Nada mais distante da verdade, já que o grupo assumiu, por exemplo, a autoria da colagem e interdição da Aima nesta segunda (7).  

O movimento ganhou notoriedade após o seu fundador, o ex-juiz Rui Fonseca e Castro, ter invadido o lançamento do livro “O avô Rui, o senhor do Café”, da autora Mariana Jones. O ato aconteceu em uma livraria do NorteShopping, no Porto, em 22 de junho. 

A autora vem sofrendo perseguição nas redes sociais e também em espaços públicos desde outubro, depois da publicação de outra obra intitulada “O Pedro gosta do Afonso”.

Candidato às últimas eleições europeias pelo também partido de extrema direita Ergue-te!, Castro voltou a repetir a mesma tática no dia 3 de agosto ao invadir o Centro Cultural Raiano em Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco, enquanto a autora Ana Rita Almeida se preparava para apresentar o livro “Mamã, quero ser um menino!”.

As ações de terror começaram após uma série de convocações feitas em redes sociais. Nas mensagens, seguidores da associação apelavam para que as pessoas lutassem contra o que eles e a extrema direita mundial chamam de “ideologia de gênero”, um conceito falso, sem qualquer lastro na realidade.

Denunciar é imprescindível, diz pesquisadora

Letícia Oliveira, jornalista e pesquisadora especializada em ações online de grupos extremistas, disse à BRASIL JÁ o quanto é importante “dar nome aos bois”.

“O trabalho de jornalista é diferente do trabalho de um influenciador. Uma pessoa como o Mário Machado, por exemplo, precisa ser denunciada diretamente. Ninguém é anônimo na internet. Por experiência própria, eu sei que dá para identificar todo mundo”, afirmou. 

Para a especialista, o que precisa ser evitado é que a mídia dê espaço para que eles falem abertamente sobre o que acreditam. “Deixar que essas pessoas falem abertamente não funciona, porque, aí sim, você acaba por dar espaço para que eles propaguem os seus ideais extremistas. Com grupos menores, sem relevância, eu nem faço a denúncia pública, entrego o que tenho diretamente aos órgãos competentes.”

Letícia afirmou que é preciso tomar cuidado com as ações chamadas de exposição nas redes envolvendo pessoas de grupos ainda desconhecidos, o que pode levar a um engajamento e ao aumento no número de seguidores. 

"Agora, se for um perfil maior, com alcance relevante, vale muito a pena, como tem sido feito por movimentos antifascistas há décadas, né? Denunciar pessoas que fazem parte de grupos neonazistas, que representam perigos diversos para a sociedade, é imprescindível.” 

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