22/12/2024 às 11:34
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Ainda jovem, Angela Mendes passou a acompanhar o pai, o seringueiro, sindicalista e ativista Chico Mendes, nas viagens a Xapuri, região extrativista e de povos tradicionais no Acre.
Após o assassinato de Chico Mendes, em 15 de dezembro de 1988, ela se manteve na luta com os trabalhadores pelo meio ambiente e a consolidação dos territórios dos povos tradicionais. Este ano, Chico Mendes completaria 80 anos caso não fosse morto.
De Xapuri, no Acre, para a edição de setembro ela conversou com a BRASIL JÁ sobre perspectivas ambientais do país, levando em consideração que o Brasil sediou a Conferência do G20, em novembro, no Rio de Janeiro, e sediará a Conferência do Clima, a COP30 no próximo ano, em Belém, no Pará.
A presidente do Comitê Chico Mendes reconhece as dificuldades enfrentadas pela administração do presidente Lula no que diz respeito aos direitos dos povos indígenas, quilombolas, passando pela demarcação de terras, o combate às queimadas e a reforma agrária, mas cobra mais empenho do presidente para cumprir suas promessas de campanha.
Mendes vê positivamente o trabalho de Marina Silva à frente do Ministério do Meio Ambiente, embora lamente sua pouca força política. Ela elogia a criação do Ministério dos Povos Indígenas e diz que as lideranças dos povos tradicionais estão prontas para assumir cargos estratégicos na gestão pública.
Mendes critica, ainda, a hipocrisia europeia, que ao mesmo tempo cobra e financia a proteção amazônica enquanto manda para o Brasil empresas que poluem o meio ambiente e adoecem as pessoas.
Leia parte da entrevista da ativista Angela Mendes, adaptada para a versão online.
Como o governo se equilibra para conciliar interesses da bancada ruralista e a luta dos povos indígenas, dos povos quilombolas, no tema demarcação de terras?
Acho que não existe conciliação possível, porque o outro lado [ruralista] deixou isso claro. A conciliação discutida no Supremo [sobre o Marco Temporal* para a demarcação de terras indígenas] coloca os povos indígenas em minoria. É claro que Lula precisa governar para todo mundo, mas também precisa tratar as políticas de forma a promover equidade e igualdade social.
O governo precisa implementar políticas que realmente alcancem as pessoas, como a reforma agrária, uma promessa deste governo que tem sido conduzida de forma vagarosa. A questão agrária é fundamental, especialmente diante do número crescente de queimadas. Precisamos garanti-la para promover justiça social e responsabilizar os autores desses crimes.
Em setembro, São Paulo bateu o recorde de pessoas hospitalizadas devido à intoxicação por conta do nível de poluição do ar.
Sim! Não são só crimes ambientais. A quantidade de pessoas adoecendo e indo parar nos hospitais configura crime contra a saúde pública. Conheço casos de falecimento e a inalação de fumaça foi fator agravante. Vamos lutar para efetivar políticas públicas que garantam território para as pessoas protegerem a floresta.
No Acre, passamos por duas grandes enchentes e agora enfrentamos seca extrema, com péssima qualidade do ar, entre as piores do mundo. É preciso construir um plano climático que garanta conforto a esses cidadãos.
O que você pensa sobre a exploração de petróleo na foz do Amazonas?
Considerando que todo esse caos climático tem como pano de fundo os combustíveis fósseis, acho um tiro no pé falar de exploração na foz do Amazonas. Não sei até que ponto as pesquisas foram feitas, mas essas intervenções costumam desequilibrar os ecossistemas.
Se é necessário ter um comportamento que aponte soluções para os problemas que enfrentamos, essa exploração não faz sentido. Estamos indo na contramão dos esforços que o Brasil está fazendo para a adaptação e mitigação desses grandes problemas.
Durante a COP28, em Dubai, o presidente Lula disse que a entrada do Brasil no Opep Plus serviria de catalisador à transição energética. Lembrando que a Opep é composta basicamente por países que têm na exploração do petróleo a principal fonte econômica de desenvolvimento.
A justificativa para o Brasil entrar na Opep Plus precisa ser mais clara, pois essa decisão coloca em risco a credibilidade do discurso do presidente e da ministra do Meio Ambiente [Marina Silva]. Não podemos desconectar teoria e prática. Não concordo com a exploração de forma alguma. Estamos vivendo situações delicadas devido à emissão de gases de efeito estufa. Insistir em velhas práticas é um erro, contribuindo mais para o problema que para a solução.
E quais as práticas que você julga necessárias, pensando não somente do ponto de vista ambiental, mas no desenvolvimento econômico também?
O governo deveria olhar com mais cuidado para as florestas. A Amazônia tem um potencial incrível para pesquisa e inovação, além do descobrimento de novos princípios ativos. Devemos considerar a cadeia de inovações que não depende apenas de commodities como gado, madeira e soja. A exploração infinita dos recursos não é eficaz para manter o equilíbrio da vida no planeta. É essencial focar no bem-estar da população e nas potencialidades da Amazônia, tornando suas populações protagonistas. O conhecimento dos povos indígenas pode ser replicado ao lado de outros saberes, principalmente em pesquisas e investimento em tecnologia.
O que você pensa dos carros elétricos, tratados como a solução ambiental?
O pessoal fala muito nos carros elétricos como inovação para a transição energética. Mas o que é preciso para fazer esses carros funcionarem? O lítio. E isso não é uma exploração mineral também? Precisamos de soluções definitivas e não acumulações. Às vezes, pensamos que biomassa e biocombustível são soluções, mas elas vêm de monoculturas, que também têm implicações.
Mas o investimento em biomassa, por exemplo, não seria uma forma de, pelo menos, mitigar a situação?
É a solução que se tem para hoje? Pode ser, mas a gente tem que pensar o que será para o futuro. Como é que a gente vai pensar em implementar um sistema de transporte viável? Aliás, isso nem era para o futuro, é algo que já deveria ter acontecido há muito tempo.
Acha que o discurso é imediatista, eleitoreiro?
Eu sempre procuro usar o Acre como parâmetro porque é o lugar em que eu vivo e conheço. Aqui temos práticas políticas que, com a troca de mandatos por ideologias diferentes, resultam em reveses. Os novos mandatos muitas vezes se concentram em benefícios próprios, ignorando planos de governo úteis.
Quando a direita assume, foca em ações superficiais, como pintar ruas em vez de implementar melhorias significativas. Enquanto não aprendermos a votar, continuaremos nesse ciclo, sem garantir parlamentares que trabalhem para o desenvolvimento real, em vez de atender aos interesses apenas de grupos poderosos, como agronegócio e mineradoras.
Marina Silva voltou a ser ministra do Meio Ambiente de Lula. O que tem achado de sua gestão?
A Marina Silva e a Sônia Guajajara [ministra dos Povos Indígenas] sofrem com o machismo e o racismo no espaço onde trabalham. Não acredito que a Marina sozinha vá resolver muita coisa. É preciso tratar os problemas de forma macro. Marina precisa de força política, o que, infelizmente, ela não tem por lidar com as forças do agronegócio e dos ruralistas dentro da própria equipe do Lula. Mas reconheço que se não tivéssemos feito essa coalizão para tirar Bolsonaro, a situação seria muito pior.
Mas o governo é progressista. Por que há reclamações?
Nós estamos assim porque, embora Bolsonaro não esteja mais no governo, os bolsonaristas permanecem azucrinando a vida da gente. Nesse contexto, todos os ministérios precisam estar pensando integralmente. O que está acontecendo hoje são crimes cometidos para tentar provar que Marina não dá conta. A Marina tem a vontade política, mas ela não tem a força necessária ao redor dela para efetivar as mudanças que precisamos enfrentar.
E a ministra Sônia Guajajara, como você avalia a atuação dela à frente do Ministério dos Povos Indígenas?
É a primeira vez que se tem um ministério dedicado ao tema. Isso foi incrível! Demonstra como os povos indígenas estão mobilizados e preparados para assumir espaços estratégicos. A Sônia Guajajara e a Célia Xakriabá estão elevando a voz e defendendo os povos indígenas, as populações tradicionais. O governo Lula acertou ao chamar pessoas da base, como a Edel Moraes no Ministério do Meio Ambiente, que tem segurado muita bola.
É importante ter as pessoas certas nos lugares certos, e um Ministério dos Povos Indígenas com capacidade para implementar as políticas para os povos originários. A Sônia e a Marina enfrentam dificuldades imensas, negociando com uma bancada que ainda é um desafio.
Mas tenho fé que podemos transformar essa realidade, criando uma bancada do cocar, da poronga, das pretas e pretos, das pessoas LGBTQIAP+, de todos aqueles que representam verdadeiramente a população brasileira.
Acha que passa pela proteção da Amazônia o acordo Mercosul e União Europeia?
Acredito que acordos que envolvam a segurança e a vida das populações precisam passar pela participação dos povos. A origem e como bens como carne e madeira são produzidos importam, porque parte das exportações está ligada a conflitos e violência. Brasil e União Europeia não podem negociar sem considerar o tratamento das populações envolvidas na produção desses bens.
É necessário que haja cuidado social. Muitas mineradoras que impactam as populações aqui são europeias, incluindo algumas da Noruega, que é um dos maiores contribuintes do Fundo Amazônia.
Uma grande contradição, não é?
Com certeza! E como é que se resolve uma contradição que, ao mesmo tempo, a Noruega doa milhões [de dólares] ao Fundo Amazônia, mas que tem uma empresa [a Norsk Hydro ASA] lá em Barcarena poluindo, contaminando e levando doença para as pessoas da região. Por exemplo, o [governador do Pará] Helder Barbalho posa de governo verde porque a COP vai ser em Belém, mas não dialoga com a população nem considera seus problemas. Recentemente, minha filha reclamou que estava há dias sem água.
Como essas autoridades olham para as periferias? Vão gastar milhões em obras sem garantir melhorias para o cidadão? Precisamos refletir sobre o legado da COP. As populações vão poder participar ou ficar relegadas a eventos paralelos? Esse formato de COP não funciona, pois não há mudanças estruturais significativas na base. Lembro que a COP26 em Glasgow, era uma coisa que prometia mudar o mundo.
E por que isso ocorre?
Esses eventos sempre acontecem em países extremamente segregadores. Fomos para a COP27, no Egito, e não estou dizendo que não devemos ir, mas quando chegamos em Sharm El Sheikh, ficamos espantadas com o fato de uma mulher não poder usar o banheiro. Nossa colega precisava ir e não havia lugar para que uma mulher fizesse suas necessidades básicas.
Esse bairro fica na parte pobre, afastado da zona turística, e a classe trabalhadora de lá é extremamente tradicionalista e machista. A minha colega saiu chorando. É difícil encontrar mulheres ocupando postos de trabalho, e, nos hotéis, por exemplo, não há. É muito triste.
Você sente que as ideias do seu pai ainda têm capacidade de influenciar as políticas públicas brasileiras quando a gente pensa nas reservas extrativistas e na proteção das florestas brasileiras?
Sim, eu sinto. E cada vez que falamos das ideias do Chico Mendes, olhamos para o legado que ele deixou, que é super atual. Você trouxe a questão das reservas extrativistas, que só existem no Brasil e são essenciais para a vida dos extrativistas e moradores da floresta. Desde a chegada de Bolsonaro, houve muitos conflitos relacionados a essas reservas e um ambiente propício à impunidade e à destruição das políticas ambientais.
O Chico falava do poder transformador da educação. O projeto Seringueiro levou educação à floresta, alfabetizando cerca de 18 mil pessoas em 2007, quando o Estado nem olhava para essas populações. A educação é uma ferramenta transformadora que forma a consciência crítica e social. As primeiras políticas a serem desmontadas são aquelas voltadas para educação e para a cultura.
As reservas extrativistas ainda precisam da atenção do poder público para garantir seu valor e buscar soluções inovadoras. Penso que o Brasil deve pensar em soluções a partir dos povos da floresta e abordar temas como humanidade e solidariedade, pois o bem-estar, para os detentores do poder econômico, é apenas o deles.
O Brasil só será transformado por políticas públicas que garantam melhorias para a classe trabalhadora. A gente precisa olhar também para si e para esse ambiente de sentimentos que hoje corroboram esse desequilíbrio. Foi por essas razões que o meu pai dedicou a sua vida.
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