António Vitorino, ex-diretor geral da OIM. Crédito: M. Mohammed, OIM

António Vitorino, ex-diretor geral da OIM. Crédito: M. Mohammed, OIM

António Vitorino: 'Política de imigração bem sucedida exige investimento'

Ex-diretor geral da Organização Internacional para as Migrações falou à BRASIL JÁ sobre os desafios do tema em Portugal

03/04/2024 às 09:14

Investimento para se chegar a uma política de imigração eficiente é o que defende António Vitorino, ex-diretor-geral, entre 2018 e 2023, da Organização Internacional para as Migrações. 

Em entrevista exclusiva à BRASIL JÁ, o português, de 67 anos —e primeiro não norte-americano a presidir a agência ligada à Organização das Nações Unidas (ONU)—, disse rejeitar a ideia de que a imigração na Europa seja um problema ou que as portas de Portugal estejam “escancaradas” aos imigrantes. 

Na visão do político e advogado, o país dispõe de uma política migratória aberta, sim, mas regulada, com regras baseadas na legislação que foi aprovada pela Assembleia da República. 

“Mas, claro, os populistas utilizam todos os pretextos e todas as situações que possam gerar alguma perplexidade ou algum receio para reforçarem a sua linha política que é conhecida: estigmatização dos imigrantes”, afirmou.

Infraestrutura da Aima

Vitorino disse que a mudança do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (Aima) criou o que ele chama de dificuldades naturais e normais quando se trata desse tipo de transição.

O ex-diretor da ONU afirmou que a solução é investir na infraestrutura da Aima de forma a responder com rapidez os inúmeros processos pendentes. 

MAIS: A operação tapa-buraco na cúpula da Aima

"Portanto, a solução tem que ser, obviamente, dotar a Aima dos meios necessários para responder não apenas o legado do passado, isto é, aos processos que estão pendentes —e que são de um número muito significativo."

Diálogo permanente na CPLP

O ex-diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações também disse ser necessário um permanente diálogo com os países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), reforçando que uma possível revogação do acordo de mobilidade pelo novo governo seria um sinal negativo para as relações de Portugal com as nações que fazem parte do grupo, incluindo o Brasil. 

Como a proposta de revogação do acordo não foi levada à campanha eleitoral pela Aliança Democrática (AD), Vitorino não acredita que isso poderá se concretizar. 

“O que é preciso é que haja coragem e a clareza de definir os objetivos da política de imigração, resistindo aos cantos de sereia da direita mais radical, da extrema direita”, argumentou.

Antes de liderar o escritório da Organização Internacional para as Migrações em Genebra (Suíça) durante a gestão do atual secretário-geral, António Guterres, Vitorino foi comissário europeu para a Justiça e Assuntos Internos (1999-2004) e vice-primeiro-ministro e ministro da Defesa de Portugal (1995-1997). 

Nos cinco anos à frente de uma agência ligada aos Direitos Humanos, afirma ter presenciado o que chama de “proliferação” de crises humanitárias, ao entrar com cinco e sair com onze emergências globais. 

Entretanto, Vitorino se diz convicto de que o apoio aos imigrantes e aos refugiados continua sendo um fator incontestável, e que ter presenciado o melhor e o pior da humanidade o ajudou a chegar a essa conclusão.

Com a palavra, António Vitorino

O senhor foi o único não-americano a presidir a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Entretanto, mesmo tendo apoio da União Europeia para uma recandidatura, resolveu retirá-la e desistir da disputa. Por quê?

Na primeira volta [primeiro turno] da votação havia uma diferença significativa porque os Estados Unidos fizeram uma grande mobilização diplomática à favor da candidata que apresentaram e que era a minha diretora-geral adjunta [Amy Pope]. Então, eu entendi que não fazia sentido persistir na votação, por isso retirei a candidatura. 

A extrema direita (e até a direita) em Portugal argumenta que o país deve ter portas abertas, mas não escancaradas aos migrantes. Qual é a sua análise sobre este argumento?

Esse é um argumento utilizado por todas as forças populistas na Europa, de que não há controle de fronteiras, e que, portanto, as portas estão escancaradas. Isso não corresponde à realidade, embora, pontualmente, possa haver situações que ajudam a reforçar esse argumento. 

Vou ser completamente objetivo: a decisão que foi tomada de transitar o SEF para a Aima criou dificuldades naturais e normais nesse tipo de transições. E gerou um atraso muito significativo nos processos de autorização de residência e de regularização no território nacional que ajudaram a criar esse ambiente e essa argumentação. 

Mas isso não é a realidade, pois Portugal é um país que tem e tem tido uma política de migração aberta, sim, mas regulada, com regras baseadas na legislação que foi aprovada pela Assembleia da República, e isso não significa uma situação de descontrole.

Mas, claro, os populistas utilizam todos os pretextos e todas as situações que possam gerar alguma perplexidade ou algum receio para reforçarem a sua linha política que é conhecida de estigmatização dos imigrantes e, sobretudo, fazer dos imigrantes o bode expiatório de um conjunto de problemas que o país tem e que não tem rigorosamente nada a ver com os imigrantes, mas que infelizmente os imigrantes são apresentados como a causa desses males. 

O acordo de mobilidade CPLP também é criticado por aqueles que acreditam que Portugal tem as portas escancaradas. Com a nova composição da Assembleia da República, mais à direita, o senhor acredita que pode haver uma revogação desse acordo?

Nós vamos ter que esperar para ver qual será o programa do novo governo, que ainda não está explicitado. Isso não foi dito pelas candidaturas da Aliança Democrática (AD) durante a campanha eleitoral. Seria, ao meu entender, um sinal muito negativo para as relações de Portugal com os países da CPLP. Existe um processo em curso de negociações com a Comissão Europeia, em Bruxelas, onde todos os mecanismos desse estilo podem sempre ser objetos de aperfeiçoamentos e de ajustamentos, mas acho que a revogação seria um mal sinal do ponto de vista do relacionamento político e não se justifica em relação à realidade.

Atualmente, existem algumas iniciativas que promovem a integração de imigrantes, como as aulas de língua e cultura portuguesa, por exemplo. Porém, muitos estrangeiros continuam com suas vidas dificultadas por conta da burocracia durante o processo de requerimento de documentações. Na sua visão, quais seriam as saídas para resolver essa questão?

Uma política de imigração bem sucedida exige investimento. Investimento nas infraestruturas, nas políticas de integração e nas estruturas administrativas que têm que garantir a regularidade do processo imigratório. 

Portanto, a solução tem que ser, obviamente, dotar a Aima dos meios necessários para responder não apenas o legado do passado, isto é, aos processos que estão pendentes e que são de um número muito significativo, mas, sobretudo, garantir que a partir de agora esses processos são analisados e tratados de forma rápida.

Portanto, essa é uma das áreas que pode reforçar a confiança dos imigrantes no processo de imigração e também a confiança das comunidades portuguesas na regulação dos fluxos migratórios. Mas todas as políticas de integração dos imigrantes exigem investimentos. 

Você referiu dois exemplos, o ensino da língua portuguesa e da cultura portuguesa, que é algo, sobretudo, que tem como alvo essas comunidades imigrantes mais recentes, que são aquelas que já não vêm dos países que falam português, mas que vem, sobretudo, da Península do Hindustão. Os indianos, neste momento. são a terceira maior comunidade de imigrantes em Portugal, além de  Bangladesh, Nepal, Paquistão… 

E esses, naturalmente, terão que ser objetos de uma atenção especial em matéria de ensino da língua portuguesa, o que não era o caso das comunidades imigrantes tradicionais em Portugal, dos brasileiros à cabeça, claro, mas também angolanos, moçambicanos, guineenses falantes todos da língua portuguesa.

E depois há outros aspectos muito importantes em uma política de integração. Em primeiro lugar, garantir que as condições de prestação do trabalho são dignas e respeitam os direitos dos trabalhadores imigrantes. Essa matéria é muito importante, porque muitas das situações de irregularidades ligadas à imigração prende-se exatamente com o mercado laboral, a chamada ‘economia paralela’, e o que leva aos abusos e à exploração dos imigrantes. 

A questão da habitação também é um problema.

Outro exemplo que exige particular atenção e que não é um problema exclusivo dos imigrantes. As condições de acesso à habitação também são um problema comum ao conjunto dos portugueses. Nós temos uma crise de habitação e essa crise toca aos portugueses e toca aos imigrantes. Não há que encontrar soluções mágicas apenas para os imigrantes, seria um erro. 

Mas, há que incluir os imigrantes dentro da população alvo das políticas ativas da habitação que permita a todas as pessoas encontrarem alojamentos em condições de dignidade para a sua vida.

O senhor acredita que a mudança de governo será capaz de manter o bom diálogo e os acordos entre os governos de Brasil e Portugal, já que os brasileiros representam a maior comunidade imigrante no país e em solo europeu?

Eu acho que existe um grande contexto na sociedade portuguesa, do ponto de vista político, da prioridade que deve ser atribuída às nossas relações com os países da CPLP, incluindo, naturalmente, o Brasil. E essa dimensão humana da CPLP é muito importante para reforçar os laços entre os países. 

Estou convencido de que, do ponto de vista político, não haverá alterações substanciais nessa matéria. O que é preciso é que haja coragem e a clareza de definir os objetivos da política de imigração, resistindo aos cantos de sereia da direita mais radical, da extrema direita, como se sucedem em vários, mas não em todos os países europeus, e investir em políticas de imigração que são aquelas que garantem a harmonia do viver em conjunto dos imigrantes e das comunidades de acolhimento.

Recentemente, a Fundação Albert financiou um estudo divulgado esta semana, aqui em Lisboa, prova que a esmagadora maioria dos portugueses, mais de 70% dos portugueses, veem de forma positiva a imigração e reconhecem o contributo positivo da imigração para o desenvolvimento do país. Portanto, é com esses portugueses, mais de 70% dos portugueses, que é preciso trabalhar em conjunto. 

E com os outros, que têm uma visão negativa da imigração, é preciso mostrar que os seus receios, os seus medos, as suas ansiedades, não têm fundamento. 

Como o senhor avalia a sua administração à frente da OIM?

Foram cinco anos de proliferação de crises humanitárias. Quando eu entrei, havia cinco. Quando eu saí, eram 11 crises humanitárias. Cinco anos onde tivemos que viver uma pandemia que parou o mundo durante, praticamente dois anos. É muito difícil resumir numa frase, mas eu digo que eu vi o pior e o melhor da humanidade nesses cinco anos, e estou profundamente convencido que o apoio aos imigrantes e aos refugiados continua a ser uma linha de fronteira da defesa da humanidade.

Últimas Postagens