Fila para atendimento na Aima em Lisboa. 22 de março de 2024. Crédito: Déborah Lima/BRASIL JÁ

Fila para atendimento na Aima em Lisboa. 22 de março de 2024. Crédito: Déborah Lima/BRASIL JÁ

Mais do que números: a aflição de quem espera pela autorização de residência

Os depoimentos sofridos de quem luta continuamente pela regularização em Portugal

22/03/2024 às 15:08 | 7 min de leitura
Publicidade Banner do empreendimento - Maraey

São oito da manhã e vinte pessoas formam fila à espera de atendimento na porta de um dos 34 postos de atendimento da Agência para a Integração, Migrações e Asilo. As lojas Aima, como são conhecidas, são destinadas a prestar serviços a imigrantes em Portugal. 

Os estrangeiros chegam antes, mas os atendimentos nesta sexta, 21 de março (como em todos os outros dias), só começam às nove horas no espaço que recebe o nome de Lisboa 1, na avenida Antônio Augusto de Aguiar.

Faz sentido chegar cedo. O expediente para assistência ao público dura só até o meio-dia. As pessoas com agendamento podem acessar o prédio, enquanto o restante aguarda do lado de fora e é chamado, aos poucos, por ordem de chegada.

Conseguir atendimento numa das lojas Aima é só um dos vários obstáculos por quem busca a regularização da permanência no país. Em alguns postos nem é possível pedir informações presencialmente, sem agendamento prévio, ao contrário do que ocorre em Lisboa 1.

A via crucis imposta ao imigrantes evidencia problemas burocráticos que já existiam com o antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o SEF —e que persistem mesmo após a extinção do órgão e criação da Aima. A mudança ocorreu em outubro do ano passado.

A transição não deu aos imigrantes qualquer alento. A angústia para conseguir marcar uma entrevista e, na sequência, a espera pela análise e entrega de documentos continuam a ser indignas. A espera pelo recebimento da autorização de residência supera o prazo estipulado pela própria agência. 

NADA MUDOU: Deixou de ser SEF, mas a Aima continua com os mesmos problemas

Ida a loja Aima

Como constatou a reportagem da BRASIL JÁ ao conversar com estrangeiros na loja Lisboa I, um dos transtornos mais graves causados aos imigrantes é a ameaça de ficar sem emprego. Em muitos casos, os contratantes exigem documento de residência para a formalização do acordo de trabalho.

Além disso, também há casos de viagens marcadas que acompanham o receio de não conseguir retornar a Portugal por não ter o cartão em mãos.

Na fila de espera, muita gente se enquadra numa das situações abaixo:

- o cartão físico com a autorização de residência não chegou;

- o prazo máximo de 90 dias úteis estabelecido pela Aima já acabou;

- cartão extraviado ou perdido;

- pessoas que buscam informações e não conseguem.

A angústia e a insegurança causadas pela espera desmedida e pela falta de respostas são recorrentes entre imigrantes. Apesar disso, procurada pela BRASIL JÁ desde fevereiro, o órgão não esclareceu quais são as causas para a deficiência no serviço nem informa o que está fazendo para solucionar a situação.

O que se sabe é que a agência tem centenas de milhares de processos em atraso. Pelo Diário da República e redes sociais, é possível constatar alguma movimentação da gestão da agência via atos institucionais. 

Made with Flourish

Por exemplo, a Aima anunciou a abertura de onze vagas para especialista de sistema de tecnologia da informação e, nos últimos dias, cargos de direção têm sido trocados na entidade.

Também foi firmado um acordo para a contratação de advogados que podem ajudar a desafogar os processos pendentes. No entanto, isso depende de um concurso público ainda sem data para ocorrer.

Enquanto isso, filas e mais filas devem ser cenário habitual onde tiver uma loja Aima. Filas que não são apenas números, mas sim histórias de vida. Confira algumas delas abaixo —as pessoas ouvidas pela reportagem preferiram não ser fotografadas pois têm medo de sofrer retaliação da administração.

Sem estudo e sem trabalho

Aliu Candé, de 34 anos, deixou a Guiné-Bissau em 2021 e chegou a Portugal para fazer um curso técnico de contabilidade. Ele submeteu a manifestação de interesse e, apesar de ter sido atendido pelo antigo SEF em 29 de agosto de 2023, ainda não recebeu o cartão de residência.

"Isso me atrapalha com o trabalho e também a segurança. A gente não tem documento legal e não está seguro no país", lamentou Candé. 

Entre as dificuldades enfrentadas, ele está impedido de estudar por estar sem dinheiro. Sem o cartão de residência, Candé não consegue um trabalho.

O cidadão de Guiné-Bissau contou que tentou resolver a questão indo a uma loja da Aima, no mês passado, mas foi orientado a esperar em casa. Segundo ele, funcionários lhe disseram que a instituição passava por um processo de mudança nos sistemas dos computadores.

Sem poder visitar os pais doentes

A angústia também acompanha a estudante Edna Cardoso, de 45 anos. Os pais dela adoeceram em dezembro do ano passado. Desde então, contra a própria vontade, ela está distante da família no Brasil enquanto faz doutorado em Educação na Universidade de Lisboa.

Edna, que mora em Portugal há três anos, relatou que a viagem ao Brasil foi adiada três vezes devido à demora na entrega do cartão de residência.

"Só preciso visitar meus pais, ajeitar as coisas por lá e retornar porque estou no meio de uma pesquisa de doutorado. Eu estou desesperada. Preciso disso para seguir a vida", contou Cardoso.

“Apesar da minha residência de estudante ser mais fácil em termos de documentação, a falta dela inviabiliza o estudante de continuar vivendo aqui e desenvolvendo o trabalho com o cronograma da faculdade”, acrescentou.

Uma espera torturante na porta de loja da Aima em Lisboa. Crédito: Déborah Lima, BRASIL JÁ

Ela também reclamou da falta de comunicação e orientação adequadas por parte das autoridades, mencionando ainda a frustração de tentar entrar em contato por telefone com a Aima.

“No telefone ninguém atende. Acho que deveria ter um sistema para verificar o andamento desse documento", sugeriu a estudante. “A gente fica às cegas. São muitas perguntas. A gente paralisa e não sabe a quem recorrer.”

Medo de perder o emprego

O eletricista José Borges, de 43 anos, deixou Cabo Verde há sete meses em busca de uma vida melhor. Cinco meses depois de ter passado pela entrevista numa loja Aima, ele ainda não recebeu o cartão de residente.

Borges se sente frustrado, principalmente quando tenta entrar em contato com a Aima por telefone. A falta de resposta e a urgência da situação o motivaram a ir pessoalmente, na sexta, a uma loja e tentar solucionar o seu caso.

"Esta é a primeira vez que venho presencialmente para cobrar uma resposta", afirmou. Ele também disse que corre o risco de perder o emprego caso o atraso na entrega do cartão seja ainda maior. 

“A empresa exige o cartão para poder trabalhar. Me exigem o cartão para continuar no emprego, então eu tenho medo de ficar desempregado."

Se ficar sem trabalho, Borges teme que não consiga trazer seus dois filhos a Portugal —um de cinco e outro de doze. E o homem ainda sofre com a impossibilidade de visitar a família. “Tenho família que está em outro lugar e não posso visitar. Não posso ir. Fico aqui preso”, reclamou.

Viagem marcada

A professora Cátia Viana, de 54 anos, também está sendo prejudicada. Vivendo no país há dois anos, ela classificou o processo de espera como frustrante.

"Dei entrada na manifestação e, depois de um ano, no dia 2 de outubro de 2023, eu vim ao atendimento e estou à espera do cartão até hoje", lamentou a brasileira. 

Na época, ela foi informada que o cartão seria entregue entre sessenta e noventa dias.

Hoje, a preocupação dela é com uma viagem planejada para agosto. Ela teme que a falta de documento de residência possa impedir sua partida ou, pior, o retorno a Portugal. As passagens para Israel, entretanto, já estão compradas. 

A brasileira também relatou prejuízos ao ir ao atendimento sem garantia de ser atendida.

“São muitos transtornos, como gastar tempo aqui, não sei nem se vou ser atendida, se vai demorar. Da outra vez, eu cheguei às três da tarde e não me atenderam porque falaram que só atende pedido de informações até meio-dia. Trabalho como cuidadora de idosos e minha paciente está no hospital. Eu tinha que estar lá com ela, mas vim tentar resolver isso porque por telefone eu já tentei ligar diversas vezes. A gravação ‘se cansa’ e desliga.”

Sem conseguir trabalho

Após fazer o pedido do título de residência em 10 de agosto de 2023, Patrícia Varela, uma estudante cabo-verdiana de 24 anos, também espera pelo documento.

"Hoje é a terceira vez que venho ver se tem alguma novidade", contou a jovem. 

No entanto, as idas à Aima não têm dado resultado, já que os atendentes continuam apenas na promessa do envio do cartão. O prazo prometido, de no máximo 90 dias, nunca se cumpre. “Eles falam que vão mandar o cartão e nada até hoje.”

Patrícia tem enfrentado dificuldade em ser contratada sem o documento necessário para formalizar sua situação regular no país. "Ninguém me contrata porque não tenho o cartão. Estou sem trabalhar por causa disso", lamentou.

Sem resposta

O pedreiro Estevão Alexandre, de 39 anos, deixou a Guiné-Bissau em maio do ano passado com um visto de trabalho e agendamento já marcado na Aima. Ele fez o pedido de residência em 13 de setembro e, desde então, aguarda pelo documento.

"Me faz falta porque queria sair do meu emprego, mas sem autorização de residência eu não consigo", disse. 

“A empresa que quero trabalhar disse que não vai me contratar, esse é o principal motivo de eu precisar do cartão. Preciso disso para firmar um contrato de trabalho."

Alexandre já foi três vezes a uma das lojas da Aima em busca de atualizações sobre o processo —todas sem sucesso. "Ainda hoje deixei o trabalho e estou cá. Não consigo trabalhar ainda hoje, não sei a que horas vou sair daqui. Vou perder um dia de trabalho”, reclamou.

Um problema familiar

Augusto Tangana, um operador de máquinas de 59 anos, natural da Guiné-Bissau, tenta representar sua irmã e sobrinha, que já passaram pela entrevista no antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em junho passado.

Loja da Aima vazia, antes de abertura ao público. Crédito: Déborah Lima, BRASIL JÁ

“Vim cá hoje para saber o que houve. Não tenho resposta. Há três semanas que venho acompanhar e nada.”

Tangana mora em Portugal há mais de 20 anos, mas os parentes decidiram morar perto dele para unir a família. As duas estão impossibilitadas de comparecer pessoalmente à Loja da Aima devido a problemas de saúde. “Elas precisam disso para trabalho e para conseguir habitação”, relatou o homem.

Reencontro com a família 

O guineense Bacar Dembó Sambú, de 34 anos, tem na ponta da língua datas importantes neste processo: chegou a Portugal em 22 de setembro de 2023 e se apresentou à Aima em 10 de novembro de 2023. 

Nesta sexta, quando completam 92 dias úteis sem respostas, ele decidiu ir à loja da Aima em busca de esclarecimentos. “Falaram pra eu esperar o período de 90 dias úteis, mas não chegou e eu vim.”

O pedreiro conta que entrou no país com um contrato de trabalho. Apesar da barreira para se regularizar, Sambú descreve a experiência em Portugal de maneira positiva. “Vivo em paz, tranquilamente. Aqui é um país muito democrático. Eu gostei”, disse.

No entanto, o guineense também compartilha a saudade e o desejo de reunir a família. Para realizar o sonho, ele considera ter a autorização de residência como primeiro passo. “Sinto saudade da família e tenho planos de trazê-los se tudo correr bem."

Estudos prejudicados

O estudante Nelson Tavares, de 18 anos, saiu de São Tomé e Príncipe em setembro do ano passado para estudar em Lisboa, cidade em que parte da família já se estabeleceu. Após entrevista na Aima há aproximadamente quatro meses, ele ainda aguarda a chegada do cartão de residência.

"A informação que me deram é que chegaria em três meses e ainda não chegou", contou Tavares.

Ele está preocupado com o impacto que a demora terá em seus planos de estudar, uma vez que a falta do cartão pode atrapalhar a matrícula em curso que pretende fazer. "As aulas ainda não começaram, mas vai me atrapalhar a falta do cartão.”

Saia-justa em evento da Aima, com queixa sobre funcionamento da agência

Jornalismo verdadeiramente brasileiro dedicado aos brasileiros mundo afora


Os assinantes e os leitores da BRASIL JÁ são a força que mantém vivo o único veículo brasileiro de jornalismo profissional na Europa, feito por brasileiros para brasileiros e demais falantes de língua portuguesa.


Em tempos de desinformação e crescimento da xenofobia no continente europeu, a BRASIL JÁ se mantém firme, contribuindo para as democracias, o fortalecimento dos direitos humanos e para a promoção da diversidade cultural e de opinião.


Seja você um financiador do nosso trabalho. Assine a BRASIL JÁ.


Ao apoiar a BRASIL JÁ, você contribui para que vozes silenciadas sejam ouvidas, imigrantes tenham acesso pleno à cidadania e diferentes visões de mundo sejam evidenciadas.


Além disso, o assinante da BRASIL JÁ recebe a revista todo mês no conforto de sua casa em Portugal, tem acesso a conteúdos exclusivos no site e convites para eventos, além de outros mimos e presentes.


A entrega da edição impressa é exclusiva para moradas em Portugal, mas o conteúdo digital está disponível em todo o mundo e em língua portuguesa.


Apoie a BRASIL JÁ

Últimas Postagens