Anderson Miguel da Silva, o Nenê, atacante do AVS. Crédito: FERNANDO VELUDO/Lusa

Anderson Miguel da Silva, o Nenê, atacante do AVS. Crédito: FERNANDO VELUDO/Lusa

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Nenê, o jogador brasileiro que desafia a idade e faz história no futebol português

Aos 41 anos, atacante do AVS, da primeira divisão portuguesa, é o brasileiro mais velho a jogar fora do país

04/01/2025 às 09:00 | 9 min de leitura | Edição Impressa
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Quem diria que um nenê pudesse ser hoje o jogador brasileiro mais velho a atuar fora do país? Aos 41 anos, Anderson Miguel da Silva defende o modesto AVS, da primeira divisão portuguesa —e ainda não pensa em pendurar as chuteiras.

Conhecido no mundo do futebol como Nenê, apelido que recebeu logo nos primeiros meses de vida pela avó, o experiente atacante chegou a representar no Brasil as cores de Cruzeiro, Ipatinga e Santa Cruz, mas fez praticamente toda a carreira na Europa.

Ganhou notoriedade em Portugal, especialmente em 2008/09, quando foi o artilheiro isolado da liga, vestindo a camisa do Nacional da Madeira, e esteve quase uma década completa na Itália, onde passou por Cagliari, Hellas Verona, Spezia e Bari.

Regressou ao território português em 2018 e por cá ficou. É seguramente um “quarentão” com muitas boas histórias para contar.

A seguir trechos da entrevista que concedeu à BRASIL JÁ:

Curiosidade: sabia que é o jogador brasileiro mais velho a jogar fora do Brasil?
Jamais. Vou ser sincero: nunca pensei que fosse alcançar essa marca, uma espécie de meta, né? Tenho atualmente 41 anos e três meses. Chegar aqui, na liga portuguesa, na primeira divisão, jamais imaginei tudo isso. Mas estou contente por aquilo que tenho feito. Isso é tudo fruto de muito trabalho. Um longo e árduo trabalho diário.
 
Ter 41 anos e seguir jogando em alto nível te assusta de alguma forma?
Vejo que é só um número. Nós, como jogadores de futebol, temos cada vez mais cuidados [com o preparo físico]. A gente passa a ser bastante rigoroso em termos de alimentação, exercício. Sempre levei a sério tudo aquilo que me foi passado, então hoje estou colhendo esses frutos. Aos 41 anos, estou bem fisicamente. Claro que também acontece um momento ou outro de estar lesionado, mas faz parte da sequência de jogos que temos. Meu corpo tem dado boas respostas, mesmo não tendo muito tempo para férias. No geral, me sinto bem. Se continuar do jeito que estou, sendo muito profissional, acho que ainda vou jogar até aos 43 anos.

Anderson Miguel da Silva, o Nenê, atacante do AVS. Crédito: FERNANDO VELUDO/Lusa
 
 

Aparecer com sua experiência em campo impõe mais respeito no adversário ou tem efeito contrário: os adversários acreditam que, por você ser mais velho, possa favorecer?
Acho que, se tenho 41 anos e jogo na primeira divisão portuguesa, carrego toda uma história. Tenho uma grande história dentro de Portugal. Quando vim para Portugal, em 2008, pelo Nacional da Madeira, comecei logo a ser visto com muito respeito. Fiz uma grande temporada. Fui o artilheiro do campeonato, com 20 gols, e tudo isso a frente, por exemplo, de Liedson [Sporting] e Cardozo [Benfica]. Saí para a Itália e depois retornei para Portugal, onde as pessoas já me conheciam bem. Também fui artilheiro da segunda divisão com o AVS. Então, acho que o reconhecimento e o respeito prevalecem. Tenho mesmo bastante experiência. São muitos anos de trabalho. Então, os adversários levam isso em conta.
 
Quantas vezes já te fizeram a pergunta óbvia e talvez estúpida: qual é o seu segredo? A contar por essa também, claro...
[Risos] Vamos dizer que é uma pergunta-chave ou algo do tipo. Já foi feita centenas de vezes, mas não tenho um número exato. O segredo passa por ser um grande profissional, valorizar a boa alimentação, não perder noites de sono, olhar para o fortalecimento físico, e, claro, ter uma grande família, a felizmente tenho ao meu lado. Tenho pessoas maravilhosas, meus dois filhos e minha esposa, que me dá total assistência fora de campo. Sempre que preciso, estão ao meu lado. Minha esposa está comigo há 20 e tantos anos. Procuro sempre fazer primeiro por eles, pela minha família, porque não adianta a gente estar feliz dentro de campo, se fora de campo a sua família vive na infelicidade.
 
Qual foi a decisão mais impactante que tomou por primeiro a pensar na sua família e quando deixou o "eu" de lado?
Aqui mesmo em Portugal, nos tempos de Vilafranquense, entre 2021 e 2023, tive algumas oportunidades para sair. Tive boas propostas da Arábia Saudita. Parei para pensar, eram ótimas ofertas, mas logo passei a analisar em termos de família, da minha filha, do meu filho, da minha mulher. É um país bastante rigoroso, sobretudo para as mulheres. Não seria fácil de viver. Então, a gente pensa: "É uma proposta muito boa? Sim. Mas vale a pena? Vale mesmo a pena? Em termos de dinheiro? Sim. Em termos familiares? Não". Do que adianta estar feliz, se a sua família não está feliz? Como é que vou desempenhar bem o meu futebol dentro de um país complexo, sendo que em casa a minha mulher e os meus filhos não vão estar contentes? Não posso olhar somente para mim, preciso olhar por eles. Estão sempre ao meu lado.

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E quando foi a sua família a tomar uma decisão importante por você?
Aconteceu na Itália, quando já estava cumprindo o meu nono ano no país. Apareceu um clube interessado, que ficava numa cidade bem pequena. Conversei bastante com eles, e eles disseram: "O melhor caminho é não irmos, mas o que você acha?". Respondi diretamente: "Estou com vocês". Inclusive, o meu retorno para Portugal parte justamente da minha esposa. Alguns anos atrás, quando estava na Itália, o Vítor Magalhães, dirigente do Moreirense, chegou a me ligar para ver se queria retornar. Na ocasião, não aconteceu. Tempos depois, a minha esposa recordou aquela ligação e me disse: "Por que você não liga para o Vítor Magalhães? Quem sabe podemos voltar para Portugal agora". E foi exatamente isso o que aconteceu.
 
Com tantas histórias para contar, qual foi o momento mais complicado da sua carreira?
A ocasião mais dolorosa foi quando estava no Hellas Verona, na Itália. Não me adaptei ao time e, sobretudo, ao treinador. Foi muito complicado. Tive que sair de Cagliari e fui então para Verona. Foi uma decisão que tomei junto com a minha família e tudo. Cheguei ao Verona e logo comecei a treinar. Os meses foram passando... sabe quando a nossa adaptação não rola? O clube sempre foi excepcional, sempre esteve ao meu lado, mas não aconteceu o mesmo com o treinador. Ele não gostava muito de sul-americanos: “Esses sul-americanos de merda, não suporto esses sul-americanos de merda”. O desconforto era grande. Acordava sempre infeliz para treinar. Pensava comigo: "Pô, tenho de ir para aquele lugar outra vez, escutar aquela pessoa". Entramos no mês de janeiro, o mercado de transferências abriu e surgiu uma proposta do Spezia, da segunda divisão da Itália, que fica numa cidade a quase três horas de distância de Verona. Meus filhos estavam na escola, então precisei tomar uma decisão com a minha esposa: "O que você acha?". Tive que deixá-los em Verona e fui sozinho para Spezia. Me adaptei rapidamente ao clube, voltei a desempenhar um bom futebol, mas foi o primeiro momento em que estive longe da minha família. Foi muito difícil. Visitava sempre eles nas folgas. Um dia minha filha acordou e me viu indo embora e disse: "Não, pai, não vai, fica aqui". Aquilo me doeu muito, foi pesado demais. Olhei para a minha esposa e disse: "Vou largar o futebol, não vou jogar mais, não vou deixar vocês aqui". Dali em diante, passei a colocar prioridades na minha vida e na minha carreira.

Anderson Miguel da Silva, o Nenê, atacante do AVS. Crédito: FERNANDO VELUDO/Lusa
 
 

O que te fez não desistir do futebol naquele momento?
Foi a minha esposa que segurou a bronca e me empurrou para fora de casa: "Pega o carro e vai. Eu dou conta, eu consigo me virar, a nossa menina vai ficar bem. Ela vai melhorar". Foi a minha esposa que esteve forte comigo, como sempre. Chorei aquela viagem toda a caminho de Spezia. Voltei para o clube, mas estava decidido a ter a minha família novamente ao meu lado.
 
Por muito pouco também não abandonou a carreira nos primeiros anos como profissional no Brasil.
A minha vida é muito louca, cara. Saí do Confiança, de Sergipe, em 2005, sem muitas perspectivas. Fiz o campeonato estadual e conheci ali a minha esposa e pensei comigo: "Pronto, não vou jogar mais, vou parar". E aí, do nada, recebo uma ligação: "O que você acha de ir para o Santa Cruz?". Falei: "Pô, Santa Cruz!? Como eles me conhecem?”. Na época, o Santa estava na primeira divisão do Campeonato Brasileiro. Eles viram meus números no Campeonato Sergipano e se interessaram. Falei então para os meus familiares: "Esse é meu último ano, vai ser a minha última tentativa. Se for para ser, vai ser. Se não for para ser, vou arrumar emprego em algum lado". No meu primeiro jogo pelo Santa Cruz, contra o Palmeiras, em São Paulo, o treinador Valdir Espinosa me chamou de lado e disse de primeira: “Então, você tem coragem?”. Respondi: "Coragem?". Ele rebateu: “Estreia na primeira divisão nacional, contra o Palmeiras, na casa deles, com estádio lotado”. Disse logo: "Se estou na chuva, é para me molhar. Vamos lá". Joguei e acabei por marcar o meu primeiro gol, logo contra o Palmeiras. Assim comecei a minha trajetória no Santa Cruz, onde fiz nove gols no Campeonato Brasileiro.
 
Depois do Santa Cruz, surgiu o Cruzeiro, um gigante do futebol brasileiro.
Na verdade, primeiro me ligaram do Palmeiras: "Você vai para o Palmeiras". Porém, o Palmeiras me oferecia apenas um ano e meio de contrato, enquanto o Cruzeiro me oferecia cinco anos. Não pensei duas vezes: "Vou para o Cruzeiro". Assinei então um contrato válido por cinco anos. Justo dizer que guardo o Santa Cruz com muito carinho, porque foi o clube que abriu as portas para mim. Inclusive, fui embora de lá com quatro meses de salário em atraso, mas nunca cobrei nadada na Justiça.
 
Qual é a sua primeira lembrança do Cruzeiro?
Uma camisa muito pesada, né? Nasci em Pirituba, um bairro simples de São Paulo, e de repente me vejo jogando num gigante do Brasil. Foi tudo muito emocionante. O Cruzeiro naquela altura ganhava tudo, era dos clubes mais vencedores do Brasil. Até hoje conto para os meus filhos sobre a experiência de ter jogado lá.

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Você chegou a ser treinado no Cruzeiro pelo Dorival Junior, hoje na seleção brasileira.
Vou te contar uma história muito engraçada. O Dorival foi treinador do Sport. Quando ainda estava no Santa Cruz, meu irmão [Michel] estava no Sport. Como estava fazendo uma boa campanha no rival Santa Cruz, o Dorival falava muito bem de mim com meu irmão nos bastidores do Sport. Anos depois, calhou de trabalharmos juntos no Cruzeiro. Mas acabou que joguei muito com ele, ficava sempre no banco. Nunca me abalei, nunca parei de treinar. Me entregava a 100%. No fundo, servia sempre de exemplo para o Dorival. Ele falava assim nas palestras: "Estão vendo o Nenê? Vocês têm que seguir o exemplo dele. Ele é a dedicação em pessoa, nunca reclama e sempre faz o que peço". Ele dizia sempre isso, mas nunca me colocava para jogar [risos]. Olha isso.
 
[Risos] Assim é complicado.
Tipo assim: "Tá bom, né, Dorival? Fazer o quê?”. Foi ali que coloquei na cabeça que a gente tem de treinar para nós. Costumo sempre dizer isso para os jogadores mais novos: "Meu amigo, vou te falar por experiência própria: treina por você, porque tem sempre alguém te observando. Então, quando você menos esperar, a oportunidade vai surgir, seja aqui ou em outro lugar". A gente colhe aquilo que planta.
 
Chegou então a Portugal e logo começou a fazer história com o Nacional. Surpreendeu ao ser o artilheiro da liga, mesmo jogando diante de nomes de peso nos ataques dos grandes Benfica, Porto e Sporting.
Estive antes emprestado ao Ipatinga, mas o Cruzeiro resolveu me chamar de volta. Voltei. E, assim que regressei, o Adílson Batista, então treinador, disse que não contava comigo e que era para treinar no time B. Falei: "Tá bom, fazer o quê, né?". Comecei a treinar separado e logo o clube organizou uma viagem para Portugal, onde havia agendado amistosos contra o Vitória de Guimarães, o Braga e o Nacional da Madeira. Fiz dois gols contra o Vitória e mais três contra o Nacional. O treinador do Nacional ficou impressionado e pediu a minha contratação. Acabei sendo contratado por empréstimo em agosto. Comecei muito bem, gol atrás de gols, aí o Cruzeiro, em dezembro, resolveu pedir a minha volta. Tudo isso porque o Nacional havia pagado 500 mil euros do meu empréstimo. Lembro de ter sido muito claro para o pessoal do Nacional: "Daqui eu não saio, vou ficar por aqui, vocês que se virem para pagar o Cruzeiro". Arrumaram o dinheiro e acabei mesmo por permanecer. Fui o artilheiro da liga, batendo o Liedson [Sporting] e o Cardozo [Benfica], que eram os grandes atacantes na altura. Fiz vinte gols e ficamos em quarto lugar, o que nos deu acesso à Liga Europa da temporada seguinte. Fizemos mesmo história. Carrego até hoje grandes recordações.

Anderson Miguel da Silva, o Nenê, atacante do AVS. Crédito: FERNANDO VELUDO/Lusa
 
 

Apesar de ter jogado quase dez anos na Itália, o Nacional foi o grande momento da sua carreira?
Sim. Sempre tive um perfil de jogador para fazer sucesso na Europa, ouvia sempre isso dos meus colegas no Brasil. Me destaquei no Nacional, mesmo tendo sido desacreditado no Cruzeiro, sobretudo pelo Adílson Batista. Superei as dificuldades no meu primeiro ano em Portugal. Meses depois, fui visitar o Cruzeiro e fiz questão de cumprimentar o Adílson: "Muito obrigado por você não ter contado comigo e ter me dado essa oportunidade de desempenhar em Portugal tudo aquilo que vocês não viram em mim”.
 
Usou mesmo essas palavras com o Adílson Batista?
Ele duvidou da minha capacidade. Provei, mais uma vez, que era capaz de fazer tudo aquilo. Tive depois momentos fantásticos no futebol italiano, joguei contra os melhores jogadores do mundo, num campeonato de altíssimo nível.
 
Depois de quase uma década na Itália, voltou para Portugal em 2018. Por que não escolheu o Brasil?
Tive uma questão no Coritiba e depois no Paysandu. Sentamos para conversar, mas aí você vai pesquisando algumas coisas, então nota um certo desânimo de voltar. Você pergunta: "Vale a pena? Lado familiar? Questão financeira? Há segurança?". Acompanho algumas coisas sobre o Brasil, as notícias, as discussões. Poxa, quando você sai de casa, não sabe se vai voltar. Te matam por causa de um telefone, por exemplo. Está cada vez pior. Coloquei tudo na ponta do lápis com a minha família e, juntos, decidimos: "Não vale a pena, é melhor ficarmos por aqui, onde temos mais tranquilidade, a gente sai a hora que quiser e existe segurança". Nunca mais tive vontade de voltar para o Brasil, sinceramente.
 
Portugal oferece segurança, mas há cada vez mais casos de perseguição contra imigrantes, racismo e xenofobia. Isso te preocupa?
Já falei com a minha esposa também sobre isso. Mas é complicado, porque é a velha história: brasileiro tem que ser estudado. Em um certo ponto, vamos dizer, eles [os portugueses] têm razão nas críticas, porque eles [os governos] abrem a fronteira. Os portugueses, então, criaram um certo preconceito. É o tal do “volta para sua terra". Eu, como imigrante, e hoje também me sinto mais português do que brasileiro —tenho dupla nacionalidade. É normal existir um rigor maior quanto a isso. 

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