Reprodução / Facebook Mamadou Ba

Reprodução / Facebook Mamadou Ba

Se racismo não for crime, o Estado não vai intervir, diz Mamadou Ba

"A política orçamentária é a tradução financeira de uma estratégia política", disse à BRASIL JÁ o ativista antirracista.

24/01/2024 às 21:54 | 9 min de leitura
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Uma das principais lideranças antirracistas em Portugal, Mamadou Ba é licenciado em Língua e Cultura Portuguesa pela Universidade Cheikh Anta Diop, em Dakar, pertence ao Movimento SOS Racismo, e é membro do Fórum Permanente da Década Internacional para os Afrodescendentes.

Ele foi membro, ainda, do Conselho Permanente da Comissão Nacional para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial entre 2015 e 2019, e participou do Grupo de Trabalho para o Censo 2021. De Vancouver, conversou por vídeochamada por quase duas horas com o jornalista Nonato Viegas sobre a luta contra a discriminação em Portugal.

A seguir uma parte da conversa:

Você está há 27 anos na luta contra o racismo. O que o motivou?

Eu faço militância desde os meus 14 anos. Eu nunca tive noção de que ser negro era um problema até chegar à Europa. Nunca. Eu sabia pela história que houve o colonialismo, que houve a escravatura, que são os albergues fundacionais do racismo. Não é que ignorasse isso, porque eu já era panafricanista, militante, mas viver na pele a violência de “ser negro” só senti quando cheguei a Portugal. Eu percebi que ser diferente era um problema. No país onde eu nasci, o Senegal, há pessoas brancas, há mestiços. Eu estudei num liceu de excelência em Dakar, com filhos de diplomatas. Mas nunca me passou pela cabeça essa história de ser negro ou ser branco. 

Cody Glenn / Web Summit

Seu depoimento me lembrou uma amiga. Ela é angolana e só descobriu o racismo quando chegou ao Brasil. Explico: sou brasileiro, uma pessoa preta, ainda que de pele mais clara, mas preta, que nasceu e cresceu numa sociedade estruturalmente racista. Ser preto, portanto, é parte da minha identidade existencial. Significa que, entre outras coisas, você é obrigado a desenvolver estratégias de sobrevivência. Desde coisas simples, como não mexer na mochila ou nos bolsos da calça dentro de uma loja, até a evitar o contato com a polícia. Às vezes, a estratégia salva a vida. A minha amiga, sendo angolana, não sabia o que é ser uma pessoa preta dentro deste contexto. Eu brincava que ela sabia e conhecia o que é ser branco em seu contexto de Angola e que, só no Brasil, ela descobriu a sua negritude. Essa experiência existencial de ausência do racismo que você e ela experimentaram, e que brancos normalmente conhecem bem, eu não tenho a menor ideia.

Meus filhos e as minhas filhas estão conscientemente antirracistas e emocionalmente maduros. Eles cresceram muito para aprender a fazer com que não sejam eles a carregar o fardo de serem negros. Meu filho mais novo, quando se lhe pergunta “tu és de onde?”, ele responde sempre com um sorriso e diz “sou de Massamá”. Massamá não é obviamente um país. Mas aquilo é uma forma muito inteligente de se defender das perguntas loucas que fazem a pessoas que não são brancas em Portugal e não são vistas como naturalmente portuguesas. Pes- soas não brancas são sempre tidas por supostas estrangeiras. A pessoa diz: “E os teus pais, e os teus avós?”. Porque o racista arranja sempre uma maneira de fazer com que tu não te sintas parte da comunidade. Tenta arranjar, mes- mo que seja de uma forma sutil, uma maneira de fazer entender: “Olha, tu estás aqui, mas tens que te lembrar que não és daqui”.

Ao que você atribui esse comportamento?

À falta de fazer uma ruptura com o racismo estrutural na sociedade portuguesa. Porque não se educou as pessoas a olhar para as partes hediondas desta nossa história. Não é julgar a história. Isto é um discurso tão pobre e tão preguiçoso... Ninguém está aqui a julgar as pessoas. A história, as responsabilidades, estão estabelecidas. Se sabe quem colonizou quem, quem escravizou quem. Qual lição tiramos do nosso passado? A lição é: a gente percebe que há um déficit de igualdade entre pessoas na sociedade. Esse déficit de igualdade você tem por causa de uma dívida histórica. Construiu-se uma narrativa de que há determinadas pessoas que são superiores a outras. E esta é a ideia que nos persegue até hoje e que faz com que agora haja racismo, haja xenofobia. Então, em vez de perder muito tempo sobre “não julgar a história” — isso é anacrônico—, o que vamos fazer para que as consequências da história não se sintam hoje no presente?

Falta debate público que inclua governos, parlamento, imprensa, sociedade?

Falta muita coragem política. As pessoas não querem nada que incomode. As mudanças estruturais de uma sociedade só acontecem quando elas conseguem incomodar. Portugal é uma sociedade estruturalmente classista e estratificada. As elites não querem saber do povo. Houve em Portugal uma modernização conservadora. Parte da elite acredita que “eu estou no lugar em que estou porque eu mereço estar aqui” e “aqueles que não estão aqui é porque não fizeram nada para estar aqui”. Isto é resultado também de uma mentalidade colonialista. Faltou pensar em “eu vou construir uma sociedade democrática em que as pessoas primeiro são valorizadas porque são pessoas”, “eu vou fazer um esforço coletivo geral para tomar partição igualitária dos recursos do país que não fiquem concentrados só em determinadas mãos”. Nós estamos à beira de celebrar os 50 anos do 25 de Abril. Neste mesmo período, o debate que se coloca não é “como que nós vamos fazer para melhorar a nossa democracia?”, é “como é que vamos restaurar os brasões coloniais?”. Perdeu-se meses a falar sobre os brasões coloniais. Ninguém parou para dizer “vamos fazer o balanço dos cinquenta anos da democracia. O que é que ficou por fazer dos três D — descolonizar, democratizar e desenvolver”. Eu agora acrescento um quarto D, de descarbonizar. Qual é o nosso balanço para isto?

Ok, falta debate público sobre direitos humanos, porque tratar de racismo e xenofobia é tratar de direitos humanos. Mas falta política pública?

Olhemos para os orçamentos do Estado. De todos os orçamentos do Estado aprovados desde 1993, nenhum tem verba autônoma para combater discriminação racial. Nenhum. A política orçamentária é a tradução financeira de uma estratégia política. Tem que ter um programa, ter planos de ação. O que muda [para o fim do racismo estrutural] são os programas e uma agenda pública de combate às discriminações, contra a xenofobia, contra o racismo, contra o machismo, contra a homofobia. Tem que haver uma agenda pública para a educação coletiva. Os programas e os planos têm custos, ou seja, a igualdade tem um custo, a democracia tem um custo. Lula [da Silva, presidente do Brasil] é um exemplo disso. Nem tudo correu bem [durante seu governo]. Mas se hoje nós temos pessoas negras em todo o lado no sistema acadêmico, no sistema universitário brasileiro, é porque houve alguém que disse “eu vou gastar x” para isso.

No Brasil, só houve políticas afirmativas antirracistas após a compreensão de que havia, e que ainda há, um problema. Esse processo, é claro, enfrentou resistência. Posso dizer que é um processo em andamento.

Eu acho que a ausência do Estado aqui é porque ele não tem nada para propor. Quando há um vazio programático não há vontade, não há predisposição para debater. Porque se tu não estás a propor nada, se tu só falas, tu não tens coisas concretas, então tu foges o máximo que puder do debate. Tu deixas o espaço vazio para esse gajo. O André Ventura [líder do Chega!] chegou à Assembleia da República e a primeira coisa que ele propôs sobre as questões das minorias foi o fim do único instrumento público de combate ao racismo. Ele fez uma proposta de lei para extinguir a Comissão para Igualdade contra Discriminação Racial. E isto é que é perigoso: ninguém veio publicamente atacar aquela proposta.

Nem atores políticos, nem imprensa?

Nada.

E os grupos antirracistas, que imagino terem gritado, foram vistos como parciais e, obviamente, interessados.

São “parciais”, “radicais”. 

O silêncio é consequência da falta de pretos na Assembleia da República? Por que os partidos não incluem pessoas pretas em suas listas? Eu acho até contraditório que hoje sejam apenas dois deputados e um deles seja do Chega!.

Exatamente. Aliás, esse é o debate central. Qual é a centralidade política que a democracia dá à questão racial? Estão todos a fugir desse debate e é bom retratar a história disso para as novas gerações perceberem. Se eles querem que a democracia seja realmente uma democracia representativa, plena, onde estão representadas todas as componentes da sociedade, [estas] têm que estar refletidas na sua representação. Isto devia ter sido muito fácil para os portugueses, porque se há um país que sabe o significado da imigração no mundo ocidental é Portugal. Portugal fez, na resistência ao fascismo e na construção democrática, homens e mulheres ousarem saltar muros para ir procurar um futuro melhor. Portugal é um país de emigração. Então, a repre- sentatividade é uma questão de cora- gem política, de perspicácia política, de vontade de construir um horizonte estratégico em que as pessoas negras entram de igual para igual na disputa política, na disputa democrática.

Não tem debate sobre racismo, segundo o que diz, não tem política pública e não há imputação de crime a quem comete racismo também.

Exato. E esse não é um tema muito pacífico, mesmo dentro do movimento ou das perspectivas acadêmicas. É um debate ainda que está por se fazer de forma mais profunda. Eu mantenho a minha posição de que há várias razões por que o racismo não é criminalizado. A primeira delas tem a ver com o valor ético, moral e político que se dá à violência racial em comparação com os outros bens jurídicos em disputa, o da violência racial e o da liberdade de expressão. Quando uma sociedade, um Estado, prefere proteger, dar mais valor à liberdade de expressão do que à violência racial, significa que dá menos valor às vidas que são ofendi- das. Significa que dá mais dignidade a uma pessoa branca que agride do que a uma pessoa negra ou não branca que se sente agredida. Isso é um problema estrutural. Se o estado ou a sociedade achasse que o racismo é uma agressão à dignidade humana e que a dignidade humana é partilhável por todas as pes- soas, independentemente da sua cor da pele, da sua origem, da sua orientação sexual, da sua religião, a criminalização do racismo não seria um problema, seria um compromisso coletivo.

Interessante você falar de criminalização do racismo e liberdade de expressão e a preferência do Estado e da própria sociedade portuguesa pelo segundo em detrimento do primeiro. Mas você foi levado à justiça justamente porque acreditou na liberdade de expressão. Ora, a liberdade de expressão — como qualquer direito — não é absoluta, mas imagino que depende de quem está em causa.

Exatamente. A dignidade humana é o limite para qualquer atividade humana. Qualquer atividade humana que ofenda a dignidade humana deixa de ser legítima. É claro que sabem disso, e tu notas um certo cinismo político no discurso da liberdade de expressão. Eu fiz parte da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação. A comissão é um órgão que fiscaliza e aplica sanções para atos racistas. Durante o meu mandato, nós só fizemos uma condenação efetiva. Uma. O meu mandato durou quatro anos. Eu, o alto-comissário e o juiz conselheiro decidíamos quais as sanções que eram aplicadas. Mais de 84% dos casos ou prescrevem ou são arquivados. Quando um instrumento do combate ao racismo tem esse nível de ineficácia significa que o Estado não tem vontade de combater o fenômeno. Tu não vais aceitar em lado nenhum, em empresa nenhuma, em escola nenhuma, que o nível de insu- cesso atinja 84%. Se atingisse até 10%, 15% é já motivo de preocupação. Agora, 84% de arquivamento ou prescrição quer dizer que não há vontade para combater isso. Uma das críticas que as pessoas me fazem quando eu defendo a criminalização do racismo é que me dizem “tu não estás a perceber que as prisões estão cheias de pessoas negras, que a prisão é uma forma de continuar a aplicar o racismo”. As pessoas es- quecem que a punição de um crime não deve automaticamente significar a prisão. A criminalização é uma forma dissuasiva da prática de um crime. Se tu sabes que há um registro criminal e que fica lá que tu és condenado por ato de racismo — e isso tem implicação na tua vida — vais ter cuidado, vais pen- sar duas vezes. Uma pessoa que está na administração pública com registro criminal não vai ser promovida e pode até ser despedida. Um agente da polícia, por exemplo, que sabe que pode ser despedido, vai ter cuidado. É para isso que serve a criminalização: um instrumento de dissuasão.

Manuel de Almeida / Agência Lusa

Sua defesa recorreu da condenação em que estava em causa uma difamação.

As pessoas levaram tempo a concordar comigo quando digo que o direito nem sempre restitui justiça. E é parte da justiça enquanto sistema ser um instrumento a serviço da ideologia racista. E ele ativa-se em função dessa sensibilidade, da sua cromacidade, da ideia de pertencer ou não ao tecido nacional. A ideia de pertencimento determina bastante a forma como se quer restituir justiça. Foi o que aconteceu comigo. Eu tive 12 processos judiciais contra mim e todos esses processos judiciais tinham um único propósito: o intuito de dizer-me que uma pessoa negra não pode falar alto, mas, sobretudo, que não faz parte da comunidade. É uma ideia muito sutil de expulsar as pessoas do tecido nacional. Quando a extrema-direita quer me atacar, automaticamente diz “o senegalês”. Eu deixo de ser português de repente e passo a ser “o senegalês”. E é curioso que até imprensa escreve isso. Eu sou cidadão português. Mas é para mostrar que eu não faço parte da sociedade portuguesa. Eu tenho muito orgulho das minhas origens, não é esse o problema, é o mecanismo psicológico o problema. Eu posso ser condenado porque eu não estou acima da lei. Eu estou a lutar pela igualdade, portanto, se eu cometer um crime, eu tenho que pagar por ele — mas se eu praticar um crime. Não pode a justiça usar o direito para normalizar a violência racial e o racismo. Onde é que está a liberdade de expressão? Eu não posso dizer uma coisa que toda a gente já disse: Mário Machado é uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro. Vou recorrer até às últimas instâncias.

Não vai pagar a multa, então. 

Não vou. A culpa e a responsabilidade são coisas muito distintas. Racismo não é uma questão moral, é uma questão eminentemente política. E uma ques- tão política convoca primeiramente responsabilidade. Porque quando eles levam o debate para a questão moral da culpabilidade é para exonerar e para isentar as pessoas, porque é para tor- nar aquilo uma cena de displicência. “Alguém pode cometer uma coisa errada, mas nós podemos perdoar”. Não. É uma questão de responsabilidade. O Mário Machado é uma pessoa que fundou um movimento. Aliás, tentou candidatar-se até a eleições com um programa nazi. Portanto, não é uma questão moral o projeto que ele quer construir para a sociedade portuguesa. Há responsabilidade dele em relação a isso. E a luta contra o racismo tem que ser orientada para este lado. É por isso que tu podes defender, então, que o racismo seja crime. Porque isso é uma forma de engajar a responsabilidade das pessoas. E do Estado também. Se não for crime, se for uma questão moral, o Estado não vai intervir nunca.

NOTA DO EDITOR: 

Instada a comentar a informação de que em quatro anos 84% das queixas de racismo e xenofobia prescreveram ou foram arquivadas, a Comissão para Igualdade e Contra a Discriminação não respondeu. Já o advogado de Mário Machado, José Manuel Castro, disse “não ter qualquer fundamento” a fala de Mamadou Ba de que seu cliente tivesse interesse em se candidatar. Também afirmou que o ativista foi condenado por “dar como verdadeiro um facto falso e cuja falsidade ficou provada em tribunal”, a saber, diz, “o dito envolvimento de Mário Machado na morte de Alcindo Monteiro”.

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