Era um final de tarde em Lisboa, e a forte luz do sol de primavera indicava o início da alta temporada turística na Europa. O burburinho dos turistas se misturava ao som dos tuk-tuks, veículos que oferecem passeios pela cidade, na quinta, dia 30 de maio de 2024, um feriado de Corpus Christi.
Na Praça do Comércio, cartão postal de Portugal, um motorista fazia o embarque de novos passageiros quando fora abordado por dois policiais municipais. O local onde ele estava não era —e ainda não é— permitido estacionar.
O motorista, um jovem brasileiro de 22 anos, logo disse ter pedido desculpas ao policial e reconhecido que está errado. Era, e é, sempre uma maneira pragmática de se evitar problemas. Fez errado, pede desculpas, ouve a reprimenda e segue a vida. Não era, porém, o que queriam os agentes.
“O primeiro [policial] me deu um tapa de mão aberta na cara”, descreveu o capixaba Karyllan Guimarães Loureiro à BRASIL JÁ.
Ao questionar a violência, o parceiro do policial lhe desfere uma forte cabeçada no rapaz. “Eu fiquei em choque, quase desmaiei”, ele disse.
Mas a ação, filmada por pedestres que acompanham a abordagem, não acabou ali. Mesmo com as mãos levantadas em sinal de rendimento, como é possível verificar nas imagens, o guia recebe um segundo golpe: o agente lhe deu outra cabeçada e o empurrou com violência para o banco da frente do tuk-tuk.
Não demorou muito e, nas redes sociais, vídeos das cenas foram amplamente compartilhados, o que causou indignação pública. Depois de passar pelo trauma, formalizar uma denúncia contra os policiais e refletir sobre o que viveu, Karyllan conversou com a reportagem.
Quarenta e sete dias depois de ter sofrido as agressões o guia turístico reconhece, com pesar, que a xenofobia pode ter sido um fator agravante no incidente.
Jovem sonhava em ser policial
“Eu não sou aquele cara que gosta muito de ficar me vitimizando”, afirmou, visivelmente desconfortável com a ideia. Afinal, a situação foi vivida por uma pessoa que admira o trabalho da polícia e que, quando criança, pensava em ser policial.
No entanto, a forma desproporcional e violenta com que o policial agiu fez com que Karyllan reconsiderasse sua posição. Ele acredita que se fosse um cidadão português, o desfecho poderia ter sido diferente.
"Ele estava muito alterado", relembrou à reportagem o jovem, enfatizando que a ação do agente foi exagerada e possivelmente motivada pelo fato de ele ser estrangeiro.
“Ele poderia sim ter gritado, mas me agredido assim, não. Ele não teria agredido uma pessoa da mesma nacionalidade.”
Logo após a agressão, o brasileiro, ainda em estado de choque e abalado emocionalmente, seguiu o conselho de amigos e prestou queixa em uma delegacia a duas quadras do Terreiro do Paço, onde ocorreram as agressões.
Ao chegar na esquadra da Polícia de Segurança Pública, a PSP, com a camisa suja de sangue e dizendo que foi agredido por policiais, disse que houve desconfiança da história que contou, dada a camaradagem natural entre os agentes de polícia.
Assim que Karyllan mostrou os vídeos, a abordagem mudou. “Quando eu cheguei e falei que fui agredido por polícia, eles reagiram de um jeito e perguntaram o que eu fiz para merecer. Depois que eles viram o vídeo, foi totalmente diferente a receptividade”, relatou o jovem.
“Eu acho que qualquer pessoa que vê um vídeo daquele que me mostra com os braços pra cima, sem oferecer perigo, tomar uma cabeçada e quase quebrar o nariz, não tem o que falar.”
Revolta na cidade onde Karyllan nasceu
As imagens inquestionáveis atravessaram o Oceano Atlântico e chegaram à foz do Rio Doce, à cidade de Linhares, no Espírito Santo, onde Karyllan viveu a maior parte da sua vida. Por lá, o caso também foi noticiado pelo jornal local e muitos amigos enviaram mensagens de apoio.
"As pessoas ficaram revoltadas, falaram que de todos o que menos merecia era eu, por me conhecerem”, disse à reportagem.
Karyllan se mudou para Portugal há dois anos em busca de uma vida melhor e com o sonho de seguir carreira no futebol europeu. Com as dificuldades enfrentadas, ele viu na atividade de guia turístico uma possibilidade de trabalho para ajudar no sustento da família.
Vivem com ele mãe, irmã, namorada, primo e cunhado, segundo ele, a sua base e apoio para não desistir. “Aqui não dá para ficar sem a família, não. É muito pesado o trabalho, sem a família aqui, para mim é impossível”, ele afirmou, com a certeza de que se estivesse sozinho, já teria voltado para o Brasil —principalmente após a violência sofrida.
A agressão foi uma experiência traumática para o jovem que nunca havia enfrentado uma situação semelhante. "Foi assustador e revoltante. Eu nunca tinha passado por isso antes, nem no Brasil, nem aqui", afirmou. Karyllan se descreve como uma pessoa trabalhadora e honesta, características que foram destacadas também por familiares e amigos nas redes sociais.
"Eu sei do meu caráter, eu sei que eu não merecia isso jamais, somente por eu estar trabalhando, levando dinheiro para a minha casa e para o governo [por meio dos impostos]", disse o brasileiro, que chegou a pensar em fazer o concurso para Polícia Federal no Brasil.
"Sempre fui a favor do trabalho da polícia. Ser tratado dessa forma pela polícia realmente não tem explicação”, acrescentou.
Depois que denunciou as agressões, Karyllan foi chamado para depor na Polícia Municipal. Segundo ele, queriam confirmar as suas declarações já anteriormente.
Na ocasião, o policial que o atendeu informou que o processo seria arquivado à espera de uma ordem superior, permitindo que os agentes continuassem em suas funções. Não houve clareza sobre eventuais sanções para os agentes envolvidos.
A BRASIL JÁ perguntou ao órgão sobre o andamento da apuração para eventual sanção disciplinar.
A resposta foi que correm dois processos: um judicial, resultado da comunicação da Polícia Municipal ao Ministério Público; e outro disciplinar, também instaurado pelo Comandante da Polícia Municipal de Lisboa.
A Inspeção Geral da Administração Interna, que ficou responsável por dar prosseguimento às investigações, afirmou que o processo disciplinar se encontra “em instrução”, ou seja, em fase de produção de prova.
Agressor segue trabalhando na rua
A Polícia Municipal de Lisboa não respondeu ao pedido de confirmação de que os agentes continuam a trabalhar normalmente ou se receberam alguma punição; também não respondeu quais penalidades os agentes acusados de agressão podem vir a receber caso sejam considerados culpados.
Mesmo assim, a BRASIL JÁ apurou que o agente que desferiu as cabeçadas contra o brasileiro continuou a trabalhar. No dia 6 de julho, ele foi fotografado conduzindo um veículo da Polícia Municipal.
Ter que “dar de cara” com seu agressor soa, no mínimo, injusto. Karyllan classifica essa demora para a tomada de uma ação concreta pelas autoridades como absurda. Reencontrar o agressor nas ruas foi revoltante, ele disse. “Quem vai proteger a gente da polícia?”
O guia turístico se disse chocado ao saber que o policial que responde por outras acusações de agressão, além dos vídeos que o mostram agredindo o brasileiro, segue sem ser afastado. “Ele tem que fazer o quê para ser afastado? Gera muita revolta”, indagou à reportagem.
“Eu tive que parar de trabalhar uns dias para refletir um pouco, quase saí do emprego. Ainda estou planejando sair, de alguma forma, mas é revoltante.”
O jovem disse que não abandonou o trabalho porque precisa sustentar a si e a sua família.
As imagens da agressão que Karyllan sofreu são inquestionáveis e ditam a forma como seu caso foi tratado. A repercussão do vídeo fez com que o jovem recebesse mensagens nas redes sociais de pessoas relatando experiências parecidas, mas que, sem o benefício de imagens, não conseguiram levar adiante qualquer denúncia.
Apesar do turismo ser uma fonte significativa de renda para Portugal, especialmente em Lisboa, a abordagem dos policiais a quem sustenta esse negócio não reflete essa importância.
Desde que começou a trabalhar como guia turístico, há nove meses, Karyllan sente que as abordagens da Polícia Municipal são desmedidas. Segundo diz, há uma constante sensação de estar fazendo algo errado, mesmo quando apenas desempenha seu trabalho.
O que dizem outros motoristas
A reportagem da BRASIL JÁ conversou com alguns motoristas de tuk-tuk na região da Baixa Lisboa. Duas motoristas, também brasileiras, reclamaram da abordagem da polícia, dizendo que tem sido mais pesada ultimamente.
"Fica difícil trabalhar porque não bastasse a falta de estacionamento para a gente, ainda tem essa pressão o tempo todo da polícia. Eles nos tratam como criminosos, principalmente a gente que é mulher e imigrante", comentou uma delas que pediu para não ser identificada.
A outra disse que já foi parada três vezes em uma única semana pela polícia municipal. “Eles [agentes] chegam com um tom de voz elevado e acham que é assim que se resolve as coisas. Parece que a gente está fazendo algo errado o tempo todo”, relatou.
Outros motoristas não relataram problemas com a abordagem policial, mas reclamaram da falta de lugares permitidos para estacionarem em áreas turísticas. "É muito difícil encontrar um lugar onde possamos parar sem levar multa", disse um deles.
Outro motorista destacou a necessidade de mudanças nas regras: "precisamos de mais espaços para estacionar porque esse é o nosso trabalho", reclamou.
Na Praça do Comércio, local onde ocorreu a agressão, a reportagem observou numa tarde de julho apenas um policial presente, focado na guarda de trânsito. O trabalho é desafiante. Sob um sol quente, ele passa horas abordando motoristas que estacionam em áreas proibidas.
Durante as abordagens que foram observadas, ele se manteve sempre educado com os trabalhadores, apesar das circunstâncias —diferentemente das lamentáveis imagens da ação naquele feriado de Corpus Christi.
Em uma conversa informal com a reportagem, o policial comentou que o colega agressor "perdeu a cabeça" no dia do episódio com Karyllan, mas defendeu sua atitude, resvalando numa frase xenofóbica —"se não querem respeitar as regras de Portugal, que voltem para o seu país"—, como se apenas estrangeiros cometessem infrações de trânsito. O mesmo agente também confirmou que o colega agressor continua trabalhando, mas preferiu não dar detalhes.
Desordem urbana é terreno para conflitos
A Associação Nacional de Condutores de Animação Turística afirmou que não comenta o caso de Karyllan porque ele não é associado. Mas a presidente da entidade, Inês Henriques, afirmou à reportagem que há falta de locais para estacionar, algo que já está sendo “ajustado” com a Câmara Municipal de Lisboa.
“Isso está a ser feito. Não vou falar sem o projeto estar efetivado. E estará efetivado muito em breve”, afirmou. A Câmara Municipal de Lisboa enviou nota à BRASIL JÁ informando que pretende reduzir à metade o número de tuk-tuks na cidade e que pretende adotar a política de tolerância zero para a sua circulação em algumas áreas.
Apesar de trabalhar atualmente como motorista de tuk-tuk em Lisboa, uma realidade bem diferente de seus sonhos de infância, Karyllan ainda sonha em se tornar jogador de futebol profissional. Ele chegou a jogar algumas partidas pelo Grupo Desportivo Forense, em Santarém, a aproximadamente oitenta quilômetros de Lisboa.
“Caso desse certo jogar futebol [profissionalmente], eu pararia mesmo de trabalhar como motorista, porque agora não é a mesma coisa mais.”
Desde o incidente, o guia turístico percebeu uma mudança no comportamento da Polícia Municipal, que, segundo ele, intensificou as abordagens aos motoristas de tuk-tuk. "Se eles já estavam em cima, agora estão em cima triplicado", disse.
Apesar da agressão sofrida, ele recebeu críticas de alguns colegas, que atribuem a repercussão do caso à maior pressão dos policiais. "Ficou muito chato continuar trabalhando. Ainda bem que a maioria me apoia, mas tem aquelas pessoas que me olham diferente e falam que eles [agentes] estão assim agora por minha causa.”
Para ele, a divulgação das imagens garantiu que o caso fosse levado a sério. "Confesso que eu não queria ser exposto assim, mas por outro lado, eu penso que foi preciso. Quando tem vídeo de agressão assim, ainda mais hoje em dia, que está tendo muita xenofobia, eu acho que foi preciso", afirmou.
Ele acredita que, sem a gravação, o caso poderia ter sido simplesmente ignorado. “Infelizmente a Justiça é assim, né? Eu não queria que tivesse essa repercussão, mas talvez tenha sido preciso.”
E é na Justiça que ele confia. As expectativas são claras em relação ao desfecho de seu caso. "As pessoas ficam falando toda a hora de indenização", disse ele, negando que essa seja a sua preocupação. Sua vontade é que os policiais agressores enfrentem as consequências.
"O que eu mais quero que aconteça é que, no mínimo, ele seja afastado ou que ele perca o trabalho. Isso é o mínimo que tinha que acontecer", afirmou.
O motorista teme que, sem uma punição adequada, o policial se sinta autorizado a cometer novos abusos.
"Se o tribunal der a vitória a ele, ele vai se achar no direito de repetir o que fez." Para Karyllan, a questão vai além da compensação financeira: trata-se de justiça e segurança. Ele acredita que a agressão que sofreu é um crime e deveria ser tratada como tal. "Para mim, é crime", disse ele.
O caso de agressão que Karyllan sofreu gerou um impacto na sua percepção sobre Portugal e os portugueses. Antes do incidente, ele mantinha uma visão absolutamente positiva do país que escolheu para viver e trabalhar, mas agora mudou um pouco, ele admitiu.
Consciência da xenofobia
Desde aquele 30 de maio, o rapaz enxerga com mais clareza as dificuldades enfrentadas pelos imigrantes no país, reconhecendo que a existência da discriminação e da xenofobia.
"Eu conheci muitos portugueses no Brasil, eram bem recepcionados, nossa forma de recepcionar não se compara com a forma com que a gente é recepcionado aqui."
Em seu discurso, o brasileiro também enfatiza a importância da mão de obra imigrante em Portugal.
Ele aponta que muitos deles ocupam empregos que os portugueses geralmente não aceitam. “A gente também vem para ajudar, para agregar”, disse, acrescentando que os imigrantes deveriam ser mais valorizados por sua contribuição econômica e social.
“Os imigrantes tinham que ser mais bem recebidos aqui. Muitos fazem um trabalho que os próprios portugueses não fazem.”
A observação é comprovada pelo Observatório do Emprego Jovem, que revelou em relatório divulgado no último dia 22 que jovens imigrantes desempregados encontram emprego mais rapidamente por estarem dispostos a aceitar trabalhos que os portugueses rejeitam.
“É evidente que os imigrantes ocupam postos nos setores de atividade menos atrativos”, afirma o documento, fruto de estudo do Instituto do Emprego e da Formação Profissional e do Instituto Universitário de Lisboa.
“O setor das atividades administrativas e serviços de apoio absorve 35,9% dos imigrantes colocados. Este setor é pouco especializado e recorre fortemente aos contatos não-permanentes, o que o torna menos desejado para os jovens. Contudo, os imigrantes, para quem a pressão de encontrar um trabalho é acrescida devido aos requisitos dos vistos de residência, se veem obrigados a aceitar estas oportunidades”, informa o documento.
Para outros jovens imigrantes que podem enfrentar situações semelhantes, Karyllan os encoraja a não desanimarem, mesmo diante de injustiças e desafios. "É não baixar a cabeça. Infelizmente, hoje em dia, no mundo todo, acontecem casos como esse. É preciso seguir em frente, seguir firme", aconselha.
Essa perspectiva otimista é o que o mantém resiliente. É por isso que ele espera que sua história sirva de inspiração para outros, mostrando que é possível superar obstáculos e continuar a lutar por seus sonhos, mesmo em um ambiente que nem sempre é acolhedor.
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