Rio de Janeiro, anos 1970. A boemia, a moda e o estilo de vida dos cariocas estão na tela do cinema. Bate uma saudade de casa (este colunista é, por acaso, de lá). As imagens de praia e sol retratam um belo domingo na cidade, que na verdade poderia ser qualquer lugar banhado pelo mar. Mas não é. É o Rio de Janeiro.
O afeto retratado nas cenas que exibem o núcleo da família Paiva é o que nos vem à mente quando pensamos num lar tradicional. Sabe aquela família do comercial de margarina? Pois é bem isso. Quem viveu aqueles tempos, daquele Rio, fala com saudade da época.
Mas “Ainda Estou Aqui” não é só sobre saudade. É mais. Eram tempos de ditadura militar e o longa-metragem brasileiro que surpreende e emociona espectadores pelo mundo mostra um lar desmantelado pelo regime.
Mostra uma família vulnerável aos desmandos da época, ao autoritarismo de um país silenciado pela truculência.
E o pior: é uma história real. A história de um patriarca, do então deputado Rubens Paiva (interpretado por Selton Mello), arrancado do convívio com os seus, torturado e morto pelo Exército, pelo Estado brasileiro.
Emerge então Eunice Paiva, magistralmente interpretada por Fernanda Torres. Eunice era a viúva que suspeitava, mas até então não tinha certeza, de que o ditadura assassinara o seu marido.
Ao vencer o Globo de Ouro —uma conquista inédita para o Brasil—, Torres saudou a figura da mulher que, mesmo destroçada, permanecia forte.
"Este filme nos ajuda a pensar em como sobreviver em momentos duros como este", lembrou a atriz
E sim, “Ainda Estou Aqui” nos faz refletir sobre como transpor situações ruins, que beiram o insustentável. Força e resiliência resumem Eunice Paiva, que na interpretação de Fernanda Torres ganha a dramaticidade necessária para traduzir tempos críticos e violentos.
Já no trailler do filme fica evidente que a escolha de Eunice pelo riso, quando o choro lhe trancava à garganta, foi uma demonstração, sobretudo, de coragem e recusa a se entregar.
Para contexto: a cena reproduz o momento em que Eunice Paiva e os filhos posam para uma reportagem da Revista Manchete. A matéria denunciaria o desaparecimento de Rubens Paiva, e o repórter diz à mulher que a orientação editorial que recebeu era para que fosse uma foto triste.
Eunice, porém, confronta a diretriz do editor da publicação e ordena que os filhos, assim como ela, sorriam.
Assim, aquela mãe que perde o marido, arrancado e assassinado pelo Estado brasileiro, debocha dos seus algozes. Com um gesto simples, se impõe, e diz —mesmo sem falar: "Ainda estou aqui".
O público vê na tela a força e o equilíbrio de uma mulher que busca ser —e é— um porto-seguro para os filhos. O filme exibe com veemência a coragem de Eunice, e a transmutação dela ao passo que a violência de uma ditadura assassina vai minando a sua vida.
A mãe começa feliz, passa pelo medo e pânico, há flashes de esperança, e, por fim, termina com um olhar perdido, mas firme, com a lendária Fernanda Montenegro (mãe de Fernanda Torres) interpretando Eunice Paiva, já no fim da vida.
Fernandona atua só com o olhar. Não precisa de mais.
Toda a história é embalada por uma trilha sonora que remete a afetos e transforma a ida ao cinema também numa experiência sensorial. Tem Erasmos Carlos com “É Preciso Dar um Jeito, Meu Amigo”, com versos críticos à ditadura, além de Tim Maia, Caetano Veloso e a cabo-verdiana Cesária Évora.
Durante a pré-estreia em Portugal, na terça (14), em Lisboa, o burburinho antes da sessão era de queixas sobre a demora para o longa chegar aos cinemas deste lado do Atlântico.
No Brasil, a estreia foi em novembro e, aqui, as exibições começam nesta quinta (16).
Bastidores da pré-estreia
Aproveitei o rebuliço para conversar com mais gente que esperava iniciar a sessão. Vivendo há mais de duas décadas em Portugal, Marise Araújo estava no Rio na época em que se passa o filme. "Eram tempos preocupantes", ela lembrou. Também disse lembrar do silêncio, do mistério e medo do período.
"Era uma época muito pesada. [Mas] ‘Ainda Estou Aqui’, com todos os sentidos que essa frase pode ter", recordou a mulher.
Também prestigiou a pré-estreia, que em Portugal chamam de ante-estreia, o embaixador do Brasil no país, Raimundo Carneiro, que defendeu mais produções que lembrem dos sombrios tempos e, assim, nunca se repitam.
"É mportante principalmente para essas gerações de hoje, porque eles vão poder ver e entender como a vida naquela época era difícil", afirmou.
Você, leitor, é a força que mantém viva a BRASIL JÁ. Somos uma revista brasileira de jornalismo em Portugal, comprometida com informação de qualidade, diversidade cultural e inclusão.
O assinante da BRASIL JÁ recebe a revista no conforto de casa, acessa conteúdos exclusivos no site e ganha convites para eventos, além de outros presentes. A entrega da edição impressa é para moradas em Portugal, mas nosso conteúdo digital, em língua portuguesa, está disponível para todos.
Ao assinar a BRASIL JÁ, você participa deste esforço pela produção de informação de qualidade e fica por dentro do que acontece de interessante para os brasileiros na Europa e para todos os portugueses que valorizam a conexão das identidades entre os dois povos.