Dos cinco militares denunciados em 2014 pelo Ministério Público Federal por participação no assassinato de Rubens Paiva em 1971, dois deles estão vivos: o major reformado Jacy Ochsendorf e Souza, e o general reformado José Antônio Nogueira Belham.
O major recebe por mês do Estado brasileiro 23 mil reais (cerca de 3,5 mil euros); o general, quase 36 mil reais (aproximadamente 5,5 mil euros), segundo informou no ICL Notícias a jornalista Juliana Dal Piva, colunista da BRASIL JÁ. Só de gratificação, no último Natal, foram 18 mil reais (2,7 mil euros).
Mais do que ganhar dinheiro público, o escândalo deveria ser que eles nunca foram presos ou punidos a exemplo dos demais torturadores.
Embora o sumiço de Rubens Paiva tenha ocorrido em 1971, ele só foi declarado morto pelo Estado 25 anos depois de seu assassinato, em 1996.
E só se soube das circunstâncias de sua morte em 2014, quando se divulgou o relatório dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, instaurada pela presidente Dilma Rousseff.
O grupo foi responsável por colher depoimentos de militares e levantar documentos do período da ditadura.
O que faziam os torturadores
José Antônio Nogueira Belham era o chefe do DOI-Codi na ocasião da tortura de Rubens Paiva. Mentiu sem se constranger durante seu depoimento à comissão.
Disse que estava de férias quando ocorreu a tortura e a morte do ex-deputado. Mas foi desmentido por subordinados.
Um deles, um tenente, médico do Exército, o alertara sobre a iminência da morte de Paiva, solicitando que enviasse o torturado ao hospital. Paiva passara a noite sob tortura e estava com hemorragia interna e externa. O alerta foi ignorado.
Para o leitor que não é brasileiro, o DOI-Codi se equivale à Pide portuguesa.
Após mentir à comissão, Belham se recusou a falar com jornalistas, pesquisadores, e disse que nunca mais voltaria ao assunto. Cumpriu a promessa e ficou por isso mesmo.
À época, a Comissão da Verdade quis abrir uma CPI para ouvir o general, mas seus integrantes não tiveram força política para a prolongação das investigações.
As ligações com o clã Bolsonaro
O advogado de Belham, na Comissão Nacional da Verdade, em 2013, era Rodrigo Rocca. Mais recentemente, Rocca advogou para a família Bolsonaro e para Mauro Cid, o ajudante de ordens do ex-presidente. Cid está preso por, entre outros crimes, tentar um golpe de Estado em 2022.
Mostraram ainda as jornalistas Juliana Dal Piva e Juliana Castro, no jornal O Globo, que Bolsonaro empregava em seu gabinete de deputado federal Maria de Fátima Campos Belham, a mulher do general da reserva que chefiou o DOI-Codi e que recusou socorro a Rubens Paiva.
A proximidade do ex-presidente com o pior dos militares da ditadura ficou escancarada nos últimos anos —e de muitas formas. Uma delas em seu gabinete na Presidência da República.
Ele levou para o Palácio da Planalto, como seu chefe do Gabinete de Segurança Institucional, comandando a Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, o general Augusto Heleno, que fora ajudante de ordens, uma espécie de faz-tudo —como era Mauro Cid de Jair Bolsonaro— do general Sílvio Frota.
Frota fora ministro do Exército na administração do general Ernesto Geisel, que o demitiu em 1977 porque o então ministro queria impedir qualquer abertura democrática no país e radicalizar a ditadura, dando —como chamou o jornalista Élio Gaspari— o golpe no golpe.
Nada até que todos estejam mortos
À época da Comissão da Verdade, cinco militares envolvidos na morte de Rubens Paiva estavam vivos. Havia um morto. Era o principal torturador do ex-deputado, o tenente do Exército Antônio Fernando Hughes de Carvalho, que morreu em 2005, antes mesmo da comissão ser instaurada.
O Ministério Público Federal denunciou os cinco militares pela morte e ocultação do cadáver do Rubens Paiva.
Além dos citados no início da reportagem, Jacy Ochsendorf e Souza e José Antônio Nogueira Belham, também estavam na lista do MPF Rubens Paim Sampaio, Jurandyr Ochsendorf e Souza e Raymundo Ronaldo Campos.
O processo, porém, nunca andou. A denúncia feita pelo Ministério Público Federal em 2014 só chegou ao Supremo Tribunal Federal em 2021.
Por sorteio, ficou sob responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes tocar a ação na corte. Mas Moraes só fez andar o processo em novembro do ano passado, duas semanas após o lançamento no Brasil do filme “Ainda Estou Aqui”.
Porque o Brasil nunca responsabilizou aqueles que em nome do Estado cometeram crimes, ocorreram excrescência como a de Belham, chefe do órgão de repressão e centro de tortura, o DOI-Codi, que ao ir para a reserva foi promovido a marechal, a maior das patentes e que só deveria ser concedida aos heróis de guerra.
Outras dezoito mortes durante a ditadura são atribuídas a ele, que nunca respondeu por elas. Durante todos esses anos, os acusados e o Exército mantiveram a versão de que o Rubens Paiva fugira de uma emboscada no início de 1971 e, desde então, desapareceu.
Os militares forjaram uma cena, digna de cinema, queimando um carro e enviaram as fotos para imprensa —todas falsas. Os jornais deram as fotos em suas capas.
A cena serviu para subsidiar uma forjada sindicância interna e dar credibilidade à falsa história de que os militares não tinham matado Rubens Paiva.
Todos os cinco indivíduos mentiram sobre o passado comum em seus depoimentos à Comissão Nacional da Verdade. Nunca tiveram coragem de admitir o que fizeram. Foi essa gente, com essa e outras mentiras, que se formaram outras gerações de militares no Exército brasileiro.
De coronéis a matadores de aluguel
Militares envolvidos em torturas e assassinatos de pessoas durante o período da ditadura no Brasil, depois de se reformarem nas Forças Armadas, foram atuar no crime organizado, envolvendo-se em grupos de extermínio e no jogo do bicho.
O tenente-coronel reformado Paulo Malhães é o mais notório deles. Na ditadura, Malhães respondia diretamente ao gabinete do então ministro do Exército, Sílvio Frota, aquele demitido do governo por querer radicalizar as ações terroristas do Estado.
Ele fazia todo o serviço sujo para Frota. Malhães comandou um centro de tortura e assassinato conhecido como a Casa da Morte, na cidade de Petrópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro. Lá, eram cometidas as maiores atrocidades contra seres humanos.
Em 2014, o tenente-coronel deu uma entrevista ao jornalista Chico Otávio, no jornal O Globo, afirmando que ele tinha dado um fim nos restos mortais de Rubens Paiva. Foi a primeira vez que um militar reconheceu o que acontecera com Paiva.
Na entrevista, Malhães dissera que os restos mortais do ex-deputado estavam enterrados na praia do Recreio, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, e que ele os desenterrou por determinação de Belham e os jogou no mar.
O tenente-coronel foi chamado à Comissão Nacional da Verdade e, em depoimento, mudou sua versão. Disse que, na verdade, jogara os restos de Paiva em um rio em Itaipava, também na serra do Rio de Janeiro.
Depois, em entrevista à Juliana Dal Piva, então no jornal O Dia, ele deixou em aberto se foi no rio ou no mar onde se desfez dos restos mortais de Rubens Paiva. Cerca de um mês depois, ele foi assassinado no sítio em que morava na Baixada Fluminense.
A polícia nunca apontou de fato quem foi o mandante de sua morte, mas afirmou que eram muitos os eventuais interessados nela.
Ele fez parte de grupos de extermínio e cuidou da segurança de bicheiros como Anísio Abraão, espalhando o terror na Baixada Fluminense. Qualquer um poderia ter interesse na sua morte.
À jornalista Juliana Dal Piva, a viúva de Malhães afirmou mais tarde que ele sempre comentara dentro de casa que os restos mortais de Rubens Paiva foram parar num rio em Itaipava.
Até hoje a família não tem certeza sobre onde está o corpo do ex-deputado, nem viu qualquer justiça ser feita aos torturadores e responsáveis por sua morte.
Ao ver o filme "Ainda Estou Aqui" ser ovacionado no Festival de Veneza no ano passado, Nalu Paiva, filha de Rubens Paiva, afirmou: “Estamos vingados!”. Sim, ao menos pela arte.
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