Embora a morte de Rubens Paiva tenha ocorrido no início de 1971, o seu destino começou a ser traçado no primeiro período democrático brasileiro, cerca de 20 anos antes.
Eram tempos de turbulência política, que incluíram o suicídio do presidente Getúlio Vargas e as várias tentativas de golpes até que conseguiram os golpistas, finalmente, em 1964.
É neste período pré-1964 e consolidação democrática, de mudança da capital do Rio de Janeiro para Brasília e de efervescência cultural em que se forja Rubens Paiva, o engenheiro e político.
Inicialmente, atuando dentro do movimento estudantil e filiado ao PSB —o Partido Socialista Brasileiro dos intelectuais Antônio Cândido, Gilberto Freyre, autor de “Casa Grande e Senzala”, e João Mangabeira—, depois no Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, de Getúlio Vargas, e, por fim, na clandestinidade.
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No PTB, que hoje só existe o nome, ele se elegeu deputado federal, mas ficou no mandato apenas 1 ano e alguns meses. Fora retirado no primeiro ato institucional golpista, que o mantivera no radar por causa da sua atuação na CPI do Ibap/Ipes.
Os alvos da investigação parlamentar foram os Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, criados para receber dinheiro de empresários brasileiros e americanos interessados em promover a desestabilização do governo de João Goulart.
ESTREIA: Onde assistir 'Ainda Estou Aqui'
Nas investigações da CPI, soube-se que os institutos recebiam remessas ilegais do exterior, especialmente dos Estados Unidos. Sem perdão por ajudar nas investigações, ele perdeu o mandato.
Do exílio, Rubens Paiva escreveu à família, segundo o livro "Ainda Estou Aqui", de seu filho Marcelo Rubens Paiva:
“(...) É possível que o velho pai vá fazer uma viagenzinha para descansar e trabalhar um pouco. Vocês sabem que o velho pai não é mais deputado? E sabem por quê? É que no nosso país existe uma porção de gente muito rica que finge que não sabe que existe muita gente pobre, que não pode levar as crianças na escola, que não tem dinheiro para comer direito e às vezes quer trabalhar e não tem emprego. O papai sabia disso tudo e, quando foi ser deputado, começou a trabalhar para reformar o nosso país e melhorar a vida dessa gente pobre. Aí, veio uma porção daqueles muito ricos, que tinham medo de que os outros pudessem melhorar de vida e começaram a dizer uma porção de mentiras. Disseram que nós queríamos roubar o que eles tinham: é mentira! Disseram que nós somos comunistas, que queremos vender o Brasil: é mentira! Eles disseram tanta mentira que teve gente que acreditou. Eles se juntaram —o nome deles é gorilas— e fizeram essa confusão toda, prenderam muita gente, tiraram o papai e os amigos dele da Câmara e do governo, e agora querem dividir tudo o que o nosso país tem de bom entre eles, que já são muito ricos. Mas a maioria é de gente pobre, que não quer saber dos gorilas, e mais tarde vai mandar eles embora, e a gente volta para fazer um Brasil muito bonito e para todo mundo viver bem. Vocês vão ver que o papai tinha razão e vão ficar satisfeitos com o que ele fez”.
E voltou.
Poucos meses depois, passou a ajudar perseguidos políticos a fugir do país e a salvar suas vidas. É neste momento que o filme “Ainda Estou Aqui” começa a mostrar a história da família.
Rubens Paiva não fazia parte da lutar armada, alvo preferencial da linha dura da ditadura. Ao contrário, era contra se pegar em armas como método de resistência política.
Ainda assim, integrou a rede de solidariedade, que ajudava aqueles que precisavam fugir da perseguição da ditadura. Foi quando lhe tiraram a vida.
Logo depois da sessão do Festival de Veneza no ano passado, em que o longa foi ovacionado com palmas que duraram dez minutos, o ator Selton Melo, que interpretou o ex-deputado, disse aos colegas: “Este filme é o corpo do Rubens.”
A filha de Paiva, Nalu, no seu direito de filha, foi além: “Estamos vingados!”
O corpo de Rubens Paiva nunca apareceu; e seus algozes nunca foram punidos, embora sejam conhecidos. Daí, a vingança.
Torturadores ainda recebem do Estado brasileiro
Dois dos torturadores e responsáveis diretos na morte dele e as famílias dos torturadores mortos recebem uma bolada de salário do Estado brasileiro: 140 mil reais (21,5 mil euros) por mês.
É impossível não pensar que, mesmo resistindo a uma nova tentativa de golpe em 2022, a democracia brasileira falhou ao não conseguir olhar de frente para o seu passado. Pior: a possibilidade de se repetir a história está à porta, seja por desconhecê-la ou por não a ter julgado adequadamente.
Ao não rever a Lei da Anistia, de 1979, como orientado pela Comissão Nacional da Verdade, que a considerou “incompatível com o direito brasileiro e a ordem jurídica internacional” porque crimes contra a humanidade não prescrevem, o Brasil permitiu, por exemplo, que Jair Bolsonaro cuspisse no rosto das 243 famílias de vítimas do “desaparecimento forçado” (como estava enquadrado Rubens Paiva até 1996) durante a ditadura militar.
OPINIÃO: Vêemencia e coragem em 'Ainda Estou Aqui'
Em 2016, ao votar pela abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, afirmou Bolsonaro: “Perderam em [19]64, perderam agora em 2016”.
Bolsonaro fez, então, algo mais torpe: dedicou seu voto naquela sessão à “memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Ustra era um notório torturador.
A aberração cometida pelo então deputado em nada deu. Em 2018, foi eleito e tentou um golpe em 2022.
Histórias como “Ainda Estou Aqui” são necessárias para o resgate da memória dolorida, especialmente em tempos de revisionismos falaciosos da história.
Ou é isso ou o Brasil, a Alemanha, os Estados Unidos, o mundo reviverão como drama dos períodos tenebrosos da humanidade.