Num Brasil que ainda tropeça quando precisa confrontar o passado, “Ainda Estou Aqui” é um grito pela memória de injustiças que ficaram para trás.
O filme, protagonizado por Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, resgata a figura de Rubens Paiva (Selton Mello), deputado cassado pela ditadura quando lutava por um país mais justo.
A produção transcende a história de uma família para ser espelho do trauma coletivo de uma nação. Assim como o Brasil, outros países da América Latina foram marcadas por regimes autoritários que impuseram medo e repressão.
Na Argentina, a violência do período militar deixou marcas indeléveis, com milhares de desaparecidos e uma sociedade que, até hoje, busca justiça.
No Chile, com Pinochet, a brutalidade da ditadura encontrou eco nos porões do Estádio Nacional, enquanto no Uruguai e Paraguai, o terror se estendia pelas ruas e campos.
Em Portugal, a ditadura salazarista, distinta em motivações e métodos, também sufocou vozes dissidentes, deixando cicatrizes na memória coletiva.
A luta pela memória, verdade e justiça foram os elementos que fundamentaram a criação de iniciativas como a Comissão Nacional da Verdade no Brasil.
Um olhar para o passado
Instituída em 2012, quase três décadas após o fim do ditadura militar, a Comissão Nacional da Verdade, nasceu com o propósito de investigar e trazer à luz as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, com especial atenção ao período entre os anos de 1964 e 1985.
Sua missão era clara: resgatar a memória das vítimas, reconhecer responsabilidades e impedir que atrocidades semelhantes se repetissem.
Apesar das limitações legais — como a impossibilidade de promover ações penais contra os responsáveis —, a comissão foi uma resposta, sim, tardia, mas necessária ao silêncio que pairava sobre os crimes de Estado.
Composta por sete integrantes de diferentes áreas, a comissão reuniu nomes como Paulo Sérgio Pinheiro, reconhecido internacionalmente por sua atuação em Direitos Humanos, e Rosa Cardoso, advogada que defendeu perseguidos políticos durante a ditadura.
Outros membros foram José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça, e Maria Rita Kehl, psicanalista e escritora.
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Pedro Dallari, coordenador da Comissão Nacional da Verdade e professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo, explicou à CNN Brasil que o grupo, apesar de ser criado para apurar crimes, não recebeu os poderes jurisdicionais — ou seja, não poderia indiciar ou tornar alguém réu.
“A lei também mandava fazer a indicação da autoria — e nós então indicamos 387 pessoas que comprovadamente estiveram associadas a casos de morte e desaparecimentos políticos. A Comissão Nacional da Verdade do Brasil é uma das quarenta que já funcionaram em todo o mundo”, afirmou.
Dallari assumiu a coordenação em outubro de 2013 e foi o responsável por entregar o relatório final, em 2014.
Assim como a estipulação do que deveria ser feito durante a comissão, a lei também estabeleceu sua duração.
Portanto, em 10 de dezembro de 2014, foi encerrado o grupo e entregue o relatório final com sua atuação. Segundo ele, foram mais de 1 116 depoimentos, além de oitenta sessões públicas realizadas em quatorze estados brasileiros e no Distrito Federal.
De acordo com o Ministério Público Federal, o órgão moveu mais de cinquenta ações penais nos últimos anos para investigar e punir os militares envolvidos nos crimes durante o regime.
A censura à imprensa e o silêncio como arma
Durante o ditadura militar, a censura à imprensa foi um dos pilares da repressão. O controle sobre a circulação de informações era usado para manter a população alheia aos abusos cometidos pelo Estado.
Jornalistas, escritores e artistas foram frequentemente perseguidos, e diversos veículos de comunicação tiveram suas publicações vetadas ou adulteradas. Este texto, leitor, jamais chegaria a você.
O impacto desse silenciamento reverberou por décadas, dificultando o resgate histórico e a conscientização coletiva. A censura também impediu que muitas famílias soubessem a verdade sobre seus entes queridos desaparecidos.
Durante anos, a versão oficial do governo encobriu crimes como assassinatos e torturas em centros de detenção clandestinos, criando um vácuo de informação que apenas uma comissão como a Comissão Nacional da Verdade poderia começar a preencher.
Fontes de informação: o quebra-cabeça da memória
O trabalho da comissão foi meticuloso e desafiador. Suas principais fontes de informação incluíram depoimentos de vítimas e familiares, arquivos de órgãos públicos e militares, relatórios de organizações de direitos humanos e investigações conduzidas por jornalistas.
Um dos maiores desafios foi acessar documentos militares, muitos dos quais permanecem classificados como secretos até hoje.
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A Comissão da Verdade também se beneficiou de colaborações internacionais. Arquivos da CIA e de outras agências de inteligência estrangeiras ajudaram a conectar pontos sobre a coordenação entre ditaduras latino-americanas, como a Operação Condor.
Essa iniciativa transnacional de repressão compartilhada ilustra como as ditaduras na região estavam interligadas, o que também reforça a relevância de comissões da verdade como ferramentas de responsabilização.
A importância do resgate histórico
Em um contexto global em que o negacionismo e o revisionismo histórico ganham força, iniciativas como a Comissão Nacional da Verdade tornam-se ainda mais urgentes. No Brasil e em outras nações que enfrentaram períodos de repressão, o caminho para a reconciliação passa, inevitavelmente, pela verdade.
A história de Rubens Paiva ecoa as de milhares de outros que tiveram suas vidas levadas pela ditadura.
Ao relembrar esses eventos, o Brasil tem a oportunidade de reavaliar seu compromisso com a democracia e os direitos humanos. Ignorar o passado é abrir as portas para sua repetição.