Quem deveria dar suporte e acolher as pessoas que, na maioria das vezes, buscam uma vida melhor em outro país, não tem condições de fazê-lo. Crédito: Déborah Lima
Imigração ficou no escuro na transição do SEF para a Aima
Reportagem apurou os bastidores da transição de um órgão para outro: precariedade no trabalho dos servidores, falta de gestão e déficit de mão de obra
ajudam a explicar os problemas na agência, mas não explicam tudo
23/07/2024 às 07:27
| 9 min de leitura
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O cenário é comum aos imigrantes em Portugal: filas, dificuldade para conseguir agendamento, um telefone que não atende, o cartão que não chega. Quem deveria dar suporte e acolher as pessoas que, na maioria das vezes, buscam uma vida melhor em outro país, não tem condições de fazê-lo.
A Aima enfrenta uma grande crise do lado de dentro. Faltam funcionários, os que ficaram enfrentam sobrecarga de trabalho e um sistema de tecnologia que não suporta a demanda.
Esse conjunto pode ser tudo, menos o que diz seu nome: Agência para a Integração, Migrações e Asilo.
Para entender o que ocorre na Aima desde a sua criação, é preciso contextualizar: o colapso no atendimento básico aos imigrantes não começou agora.
Antes de ser Aima, o órgão que atende os migrantes em Portugal foi muita coisa, especialmente porque se instala durante a ditadura. Durante o Estado Novo, entrada, permanência e saída de estrangeiros em Portugal eram controladas por polícias políticas:
. a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, a PVDE, entre 1933 e 1945:
. a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a Pide, entre 1945 e 1969;
. e a Direção-Geral de Segurança, a DGS, entre 1969 e 1974.
A Revolução de 25 de Abril de 1974 resultou na extinção da DGS e, na redistribuição de suas funções entre a Polícia Judiciária, a Guarda Fiscal e as Forças Armadas, nasce o Serviço de Estrangeiros.
Em novembro de 1974, foi criada a Direção do Serviço de Estrangeiros —na dependência direta do então Comando Geral da Polícia de Segurança Pública (PSP)— que se tornou autônoma em junho de 1976, passando a ser chamada de Serviço de Estrangeiros (SE).
Apesar de ainda estar nas instalações da PSP e ser dirigido por militares, o SE passou a depender exclusivamente do Ministério da Administração Interna, como era até o ano passado.
Com a pré-adesão de Portugal à Comunidade Econômica Europeia (nome à época para União Europeia), o órgão precisou se adaptar para gerenciar a crescente movimentação de estrangeiros. Por isso, no ano da adesão plena à comunidade, em 1986, o país precisou incluir o "F" de fronteiras ao órgão.
E foi assim durante os últimos 37 anos. Entre altos e baixos ao longo de sua história, sempre houve a ideia de que era preciso separar as funções policiais das funções administrativas.
"O SEF tinha duas grandes carreiras: a carreira policial e a não-policial", explica Artur Jorge Girão, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Aima há oito anos, desde quando decidiu lutar por uma "representação mais condigna".
"Um imigrante não é um criminoso, é uma pessoa que vem à procura de uma vida melhor. E, portanto, havia-se um olhar demasiado policial sobre estas coisas. E isso se refletia nas carreiras administrativas e policiais no SEF, porque havia uma grande diferença entre elas", relembrou em entrevista à BRASIL JÁ.
O início do fim do SEF
A luta sindical não era necessariamente a favor do encerramento do SEF. Mas foi inevitável.
O começo do fim aconteceu com um marco trágico no dia 12 de março de 2020. O ucraniano Ihor Homeniuk, de 40 anos, foi encontrado morto em uma das salas de imigração do Aeroporto de Lisboa. Casado e pai de dois filhos, Homeniuk havia chegado a Portugal dois dias antes, vindo de Istambul, com um visto de turismo. Ao passar pela primeira linha de controle foi encaminhado para uma entrevista mais detalhada e informado que sua entrada em território nacional estava negada.
Segundo a acusação do Ministério Público, Ihor Homeniuk morreu por asfixia lenta após ser agredido com chutes e golpes de bastão pelos inspetores. As agressões quebraram oito costelas do cidadão ucraniano.
Além disso, ele foi deixado algemado com as mãos para trás e deitado de barriga para baixo, dificultando sua respiração por um longo tempo. O resultado foi uma parada cardiorrespiratória.
Três inspetores foram demitidos da função pública e condenados por crime de ofensa à integridade física grave qualificada, agravada pela morte. Daí em diante, a pressão sobre os ombros da diretoria do SEF, do Ministério da Administração Interna aumentou e recaiu, inclusive, sobre o próprio primeiro-ministro à época, António Costa.
Com isso, nove meses depois da morte de Ihor Homeniuk, o governo anunciou o início de uma reforma que previa o fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. O processo foi lento e passou por diversos adiamentos.
"[A transição] demorou dois anos. É inadmissível. Psicologicamente, os trabalhadores ficaram afetados. É a mesma coisa que nos digam assim: 'vamos morrer todos um bocadinho'. Andaram dois anos a nos dizer que era daqui a três meses, daqui a seis meses, isto não se faz. Isto foi mau para toda a gente", criticou Jorge Girão, expondo o ponto de vista dos funcionários da agência.
A transferência oficial ocorreu em 29 de outubro de 2023. As funções do SEF foram divididas: a Polícia de Segurança Pública passou a controlar as fronteiras aéreas; a Guarda Nacional Republicana, as terrestres e marítimas; e a Polícia Judiciária trata crimes de imigração ilegal e tráfico de pessoas.
A Aima e o Instituto de Registos e Notariado ficaram com as tarefas administrativas, como a concessão de passaportes e renovações de residência.
No entanto, a situação de queixas e falhas nos processos que só vinham aumentando nos últimos anos, piorou. A Aima herdou cerca de 350 mil processos pendentes, num contexto aproximado de um milhão de imigrantes vivendo em Portugal.
E isso com a redução de mais de mil funcionários —além dos policiais, houve quem saísse para integrarar outros setores em busca de melhores condições financeiras e quem simplesmente não quisesse continuar.
Uma grande lista de problemas
Apesar de dois anos para se concluir a transição entre SEF e Aima e melhorar o atendimento aos novos residentes estrangeiros, não foi isso o que ocorreu.
A reportagem da BRASIL JÁ ouviu funcionários da agência que ajudaram a fazer um raio-X da situação do órgão. Houve quem declarou que há pilhas e pilhas de cartões de residência para serem entregues e que simplesmente não são, porque não é sempre que há funcionário disponível para executar esse serviço.
É fato: os funcionários devem estar exaustos. Mas houve, de certa forma, desleixo, admite o dirigente do sindicato:
"[A demora na transição] desmotivou trabalhadores. Admito que [em] alguns setores têm havido desleixo na função porque as pessoas não viam o futuro, não viam nada a nascer e acho que todos os trabalhadores têm que sentir que estão a participar de algo em crescimento, não de algo que se está a destruir. Isto afetou. Era mentir se dissesse que não.”
A declaração reforça a situação vivida por muitos imigrantes que dependem do serviço da Aima. Nos últimos meses, houve protestos de imigrantes em busca de respostas e de um atendimento digno. Na porta da agência, o cenário de filas é constante.
Todos com histórias parecidas, entre elas, as mais comuns: não conseguem atendimento por telefone e aguardam o título de residência que extrapola o prazo de noventa dias e que não chega.
A reportagem da BRASIL JÁ esteve presencialmente na Aima em Lisboa no dia 18 de junho, uma semana antes do pronunciamento do presidente da instituição na sessão do Parlamento no dia 25 de junho.
Na ocasião, o presidente da Aima afirmou que existem atualmente 410 mil processos pendentes de imigrantes em Portugal. Desse total, 342 mil pendências se referem a “manifestações de interesse e processos administrativos de autorização de residências”.
Ele acrescentou que o número se soma a outros “70 mil processos que estão em tramitação”. No total, chega-se ao número de pendências “ligeiramente acima dos 400 mil”. Além disso, aprovou-se uma “estrutura de missão” que funcionará até 2 de junho de 2025 com a promessa de ter até trezentas pessoas dedicadas à tramitação administrativa dos processos e ao atendimento aos requerentes.
Na Loja da Aima da Avenida Antônio Augusto de Aguiar, região central de Lisboa, a reportagem foi recebida por um funcionário responsável pela comunicação, mas ele disse não poder dar nenhuma declaração e afirmou que os pronunciamentos são feitos apenas de maneira oficial, pelo presidente da Aima —o que raramente ocorre.
Ele afirmou, ainda, que nesse momento estão todos focados em atender as demandas dos imigrantes, sendo assim, os pedidos de entrevistas não podem ser atendidos. A BRASIL JÁ enviou desde março vinte emails com demandas ao órgão. Nenhum teve resposta.
Outro funcionário em condição de anonimato relatou a burocracia e negligência de alguns setores e de terceirizados, porque não sabiam quem estaria no comando do novo órgão nem quais seriam as suas diretrizes nem se, no caso das empresas contratadas para a prestação de serviço, seriam mentidas.
Por um período de cinco meses, a agência ficou sem 23 diretorias. “Estava o caos”, relatou.
No local também havia uma advogada que trabalha com imigração há dez anos. “É muito perceptível a decadência com o passar do tempo. Antigamente em quinze dias o imigrante tinha seu agendamento e logo a AR [autorização de residência]. Agora eu preciso entrar com um pedido judicial e ainda assim demora de trinta a quarenta dias para agendarem”, afirmou.
O problema, no entanto, é mais complexo. Reforçar o capital humano não é a solução única. Funcionários enfrentam dificuldade com o sistema de informática da agência. São inúmeras as vezes que o trabalho precisou ser interrompido por causa de pane no sistema.
"Quando nasceu este novo organismo, ele já devia vir dotado de duas grandes questões, que eram: mais pessoal e melhor nível tecnológico, com sistemas desenvolvidos para que o novo organismo arrancasse com tudo fortalecido. O problema do SEF a nível documental era precisamente a questão da falta de pessoal e da falta de um sistema de informática mais robusto. E isto não foi feito quando arrancou. Sem este reforço pessoal e sem este reforço tecnológico, [a agência] já começou deficitária. Portanto, isto foi um grande erro logo para começar, e correu mal", critica Jorge Girão.
Segundo ele, o suporte tecnológico tem apresentado melhorias nos últimos dois meses. "Tem sido feito um esforço para tentar melhorar", ele disse.
Os problemas com o sistema incluíam lentidão, travamentos frequentes e perda de progresso no trabalho, exigindo que processos fossem reiniciados repetidamente, inclusive durante o atendimento aos imigrantes, que já precisou ser interrompido por essas falhas de tecnologia.
"Diziam que era porque a base de dados estava muito sobrecarregada, e eu não tenho nenhuma explicação oficial para isto. A questão é que, efetivamente, de dois me- ses para cá o sistema está melhor, e se sente esta melhoria, esta capacidade, mas dois meses atrás a coisa ia muito mal. Tive várias situações [de sistema] lento, [que] dava problema, 'crashava' [quando para de funcionar completamente]. Estava a trabalhar, de repente tinha de começar todo o processo da pessoa outra vez", descreveu Girão.
Os problemas tecnológicos persistiram por vários meses e se agravaram durante a transição do SEF para a Aima. Jorge Girão acredita que a situação foi exacerbada pela decadência da plataforma existente e pela falta de manutenção adequada.
"Agravou-se depois, mas eu acho que tem a ver com a própria decadência do sistema em si. Acho que estava a precisar de uma manutenção forte, reforçada e que não estava a acontecer."
Ou seja, a transição não é apenas uma questão de realocação de funções, mas um processo complexo que exigiu (e ainda exige) uma revisão profunda dos processos internos, tecnológicos e de recursos humanos para garantir que o atendimento aos imigrantes em Portugal seja eficiente e justo.
"Toda a gente pensou que o SEF ia acabar, mas não estava a nascer aqui ao lado a Aima robustecida. Houve aqui um certo 'é amanhã, é daqui a três meses, é daqui a seis meses'. Isto em termos de aparelho de Estado, de própria contratação de sistemas e de estratégias, tem um impacto tremendo. Portanto, admito que isto tenha sido um conjunto de várias questões", conclui Girão.
Desafios de integração
A relação entre Aima e imigrantes é objeto de estudo de Natalia Benatti Zardo de Curci, doutoranda em Migrações na Universidade de Lisboa.
"Integração deve ser entendida como acesso igualitário aos ser- viços básicos e direitos. Muitas vezes, não se considera o papel dos profissionais que atuam nesse processo", afirmou à BRASIL JÁ a pesquisadora que tem atuado profissional e voluntariamente no atendimento à população migrante desde 2018, com foco na área educacional.
Brasileira de origem, iniciou seu trabalho com imigrantes em Florianópolis, onde ensinava português. No Brasil, durante o mestrado em Educação, atuou como educadora em uma casa de acolhimento, apoiando imigrantes na aprendizagem da língua portuguesa. Ao chegar a Portugal, Natalia enfrentou de- safios inesperados.
"Sabemos que ainda há um olhar diferenciado para aqueles que falam português do Brasil, então atuar como professora de português não foi possível aqui", relatou. Dessa forma, ela passou a trabalhar como técnica de projetos, auxiliando imigrantes com entrevistas, currículos e outras atividades operacionais.
Natalia atuou em duas instituições que acolhem imigrantes, trabalhando na integração de pessoas de diversas nacionalidades: Bangladesh, Paquistão, Índia, Colômbia, Venezuela e Rússia, ela cita como exemplo. As instituições recebem migrantes por meio de indicações da comunidade local, dos Centros Locais de Apoio à Integração de Migrantes, Juntas de Freguesia, centros de saúde e Aima.
Com a experiência, Natalia observou que as políticas de integração muitas vezes culpabilizam os imigrantes pelas suas dificuldades de integração.
"Dentro das políticas de integração e dos estudos de migrações, muitas vezes se nota que há um foco de culpabilizar os imigrantes pela sua dificuldade de integração”, diz.
Segundo a pesquisadora, a integração deve ser entendida como acesso igualitário aos serviços básicos e direitos e, segue ela, chamando atenção para o período de “apagão” dos serviços durante a transição do SEF para a Aima: “Muitas vezes, não se considera o papel dos profissionais que atuam nesse processo".
"O que temos visto nessa transição entre SEF e Aima são vários atritos. Vemos imigrantes insatisfeitos com a diferença no atendimento e, do lado dos profissionais, há sobrecarga e falta de orientação clara. É preciso encontrar uma solução sustentável para ambas as partes: os profissionais precisam de condições adequadas para atender as demandas e os imigrantes precisam de respostas rápidas e coerentes", defende Natália.
A pesquisadora ressalta a importância da formação contínua para os profissionais que atendem o público. "Muitas vezes, há receio por parte dos imigrantes em acessar serviços públicos devido à discriminação e preconceito. A mesma situação pode ser tratada de maneira diferente dependendo de quem atende. Por isso, é crucial trazer mais formação para esses profissionais, pois os imigrantes fazem parte da população residente", conclui.
Natalia planeja iniciar um processo de entrevistas este ano para entender melhor os atritos entre imigrantes e profissionais. "Há muita demanda e poucos recursos adequados. O preconceito e a falta de formação são problemas recorrentes. Precisamos olhar para os profissionais para entender esses atritos e buscar solu- ções que beneficiem todos", disse.
Para a tese de doutorado, ela pretende entrevistar funcionários e imigrantes não somente em Lisboa, mas também em outras regiões do país. "Muito já se discute sobre os problemas da gestão da migração à escala local. Mas pouco se fala com os profissionais que estão ali na linha de frente, implementando o que 'vem de cima', tendo que se adaptar constantemente com as mudanças, e ao mesmo tempo tendo que desenvolver estratégias pragmáticas para lidar com o real, que é complexo, a partir de baixo, sem ferramentas ou recursos adequados para a demanda", finaliza.
Ana Catarina Mendes, eleita eurodeputada nas últimas eleições, foi ministra-adjunta e dos Assuntos Parlamentares entre 2022 e 2024, pasta que tutelou as secretarias das Migrações, Desporto, Igualdade e Juventude, responsável pela extinção do SEF e a criação da Aima. A reportagem da BRASIL JÁ tentou entrevistá-la, mas o pedido foi negado.
“Infelizmente por estar em processo de mudança para Bruxelas, onde vai assumir o mandato de eurodeputada, a deputada Ana Catarina Mendes não vai conseguir atender ao seu pedido”, informou a assessoria de imprensa do Grupo Parlamentar do Partido Socialista.
Para esta reportagem, a BRASIL JÁ também solicitou a participação do atual ministro da Presidência, António Leitão Amaro, e do presidente do Conselho Diretivo da Aima, Luís Goes Pinheiro. Ambos pedidos foram negados e sequer enviaram nota.
Com reportagem de Jordan Alves
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