Usuário de drogas em Lisboa Crédito: António Cotrim
PCC amplia presença na Europa atuando com parceiros, diz especialista
Pesquisadora afirma que grupo opera em território português ao menos desde 2018, mas que rastrear atividade dos criminosos é difícil devido à diversificação dos negócios
10/10/2024 às 09:27
| 7 min de leitura
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No aeroporto de Lisboa, três jovens brasileiros desembarcaram em meados de agosto carregando mais do que apenas malas com roupas. Eles escondiam em seus corpos insumo para se produzir trinta mil doses individuais de cocaína, que, preparadas, destinavam a abastecer o mercado europeu.
Os dois homens e uma mulher, com idades entre 20 e 26 anos, foram colocados em prisão preventiva enquanto eram investigados pela insígnia de “correios humanos” pela Polícia Judiciária, a equivalente à Polícia Federal no Brasil.
Ainda em caráter preliminar, investigações apontam que os jovens foram recrutados por organizações criminosas que exploram a vulnerabilidade econômica e emocional de suas "mulas".
O caso se soma a investigações mais amplas sobre a incursão do Primeiro Comando da Capital, o PCC, em Portugal.
Segundo investigadores portugueses e brasileiros, o maior grupo de narcotráfico do Brasil decidiu ampliar seus negócios internacionais para a Europa por meio de capital próprio, tentando prescindir de seus tradicionais parceiros europeus, sejam os da máfia da Itália, da Roménia ou os mafiosos dos Países Baixos.
O secretário Nacional de Segurança Pública do Brasil, Mário Sarrubbo, afirmou em julho à BRASIL JÁ que o PCC transporta anualmente entre vinte e trinta toneladas de drogas para o país.
É sem dúvida o principal negócio do grupo criminoso, mas, de acordo com Sylvie Isabelle Figueiredo, especialista em Segurança e Inteligência, outros crimes são cometidos para garantir o sucesso da operação, como ataques cibernéticos e lavagem de dinheiro (em Portugal se usa branqueamento de dinheiro).
Ao divulgar apreensões de drogas este ano, a Polícia Judiciária (PJ), por meio de sua Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes, alertou que segue a ser frequente o recrutamento do que os investigadores chamam de "correios humanos".
Normalmente, afirmou a corporação, são jovens adultos, em situação de vulnerabilidade econômica ou emocional que são aliciados para transportar a droga contrabandeada dentro dos próprios corpos. De acordo com a PJ, essas pessoas são enganadas com falsas informações sobre os efetivos riscos que irão enfrentar, incluindo para a sua vida”.
A situação em parte se encaixa na seguinte histórua. Em 19 de julho, o Tribunal de Santarém condenou três brasileiros por contrabandear 294 quilos de cocaína oculta em um contêiner de polpa de açaí.
A droga, descoberta pela Polícia Judiciária em junho de 2022, fazia parte de um esquema que usava rotas controladas pelo PCC e por Sérgio Roberto de Carvalho, apontado pela polícia como “Escobar brasileiro” —em referência a Pablo Emilio Escobar Gaviria, o infame narcotraficante colombiano que liderou o Cartel de Medellín e que se tornou um dos homens mais ricos e poderosos do planeta na década de 1980.
A quantidade apreendida poderia produzir mais de 3,2 milhões de doses individuais, segundo afirmou a PJ.
O crime organizado brasileiro em território português preocupa as autoridades de ambos os países. Em julho, o ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil, Ricardo Lewandowski, alertou para a atuação do PCC em Portugal.
Segundo ele, a Polícia Federal trabalha com as autoridades portuguesas no combate ao tráfico de drogas. A declaração foi feita durante uma viagem a Lisboa e teve ampla repercussão.
Em entrevista exclusiva à BRASIL JÁ, publicada no site da revista, o secretário e braço direito do ministro apontou a colaboração de cidadãos portugueses com o PCC.
"Há alguns integrantes aí de Portugal, sim. Onde a facção atua, de uma maneira ou de outra, ela acaba aliciando algumas pessoas da região. Em Portugal acontece a mesma coisa, mas não dá para quantificar", afirmou Sarrubbo.
Ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo, com 34 anos de atuação no Ministério Público, Sarrubbo conhece de perto as investigações contra o PCC, que nasceu no sistema penitenciário do estado e, atualmente, avança com o tráfico de drogas pelo velho continente.
Segundo o secretário Nacional de Segurança, quando se fala de narcotráfico é preciso ter cautela porque, disse, "muitas vezes a pessoa está realizando uma determinada conduta e sequer sabe que está atuando para uma organização criminosa de dimensões intercontinentais".
Sarrubbo disse, ainda, não ser possível dimensionar o tamanho do PCC no país. Um número do Serviço de Informações de Segurança de Portugal, o SIS, citado em um relatório divulgado pela CNN em novembro de 2023, estima em 1 mil os envolvidos com a facção no país. Para Sarrubbo, entretanto, o número pode ser ainda maior.
A professora e investigadora na área de crime organizado e narcotráfico Sylvie Isabelle Figueiredo, discorda. Para ela, ao contrário, a existência de 1 mil pessoas ligadas ao PCC é um dado exagerado. Independentemente do número exato, a presença do Primeiro Comando da Capital causa preocupação nas autoridades.
Segundo Figueiredo, que atuou por 15 anos no SIS e é professora de Crime Organizado, Tráficos, Terrorismo e Prospectiva na Universidade Nova de Lisboa, há mais dúvidas do que certezas sobre a efetiva atuação do PCC em Portugal.
Ela diz que há indícios de que o grupo opere em território português ao menos desde 2018, mas que “não há muita informação relativamente àquilo que eles podem estar a fazer”.
“O primeiro é que os elementos do PCC em Portugal não estão só envolvidos apenas em droga. Foram detidas pessoas envolvidas, por exemplo, em cibercrime, em situações de branqueamento de capitais [lavagem de dinheiro]”, lista.
Neste ponto, investigadores e especialista concordam: o PCC não atua apenas e simplesmente no narcotráfico. Normalmente, um crime serve para ocultar outro crime, como a ligação do grupo com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, envolvendo a transação de 200 mil reais (cerca de 36 mil euros).
Internacionalização dos grupos criminosos
Essa internacionalização dos grupos criminosos é um dos objetos de estudo de Sylvie Figueiredo, que analisa por que os grupos se estabelecem em determinados territórios e como a mobilidade dos criminosos se relaciona com a distribuição de drogas, especialmente a cocaína.
“Por regra, o PCC atua em parcerias, o que é uma característica do grupo”, diz.
Ela aponta que a facção se posiciona como intermediário no circuito do narcotráfico europeu, colaborando com o transporte para outras organizações, como a máfia italiana 'Ndrangheta, considerada umas das principais e mais poderosas organizações criminosas do mundo.
A cooperação internacional é vista como essencial para o combate eficaz ao crime organizado transnacional. Figueiredo defende a troca de informações entre as forças de segurança de diferentes países, uma vez que os grupos criminosos operam em múltiplos territórios.
"Eles funcionam em vários países diferentes. E cada país, isoladamente, não tem capacidade para compreender o que é que o grupo está a fazer, do princípio ao fim. Por isso, é muito importante fortalecer a capacidade de partilhar informação e o conhecimento entre as polícias", defende, apontando para a boa cooperação entre Brasil e Portugal.
Na edição de julho, a BRASIL JÁ mostrou que Portugal adotou em 2001 uma política de descriminalização de pequenas quantidades de drogas de todos os tipos, incluindo cocaína, maconha e heroína. Naquela época, a Europa vivia uma epidemia do uso de heroína e, 20 anos depois, Portugal viu uma redução de 85% no número de usuários.
Ainda assim, o tráfico é presente no país. Para a pesquisadora, a grande quantidade de drogas apreendidas em Portugal se dá pelo fato de o país servir de passagem para o resto da Europa, onde o consumo de droga é maior.
A investigação da presença do PCC em Portugal avança, mas especialistas como Figueiredo advertem que há a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre o funcionamento destes grupos para desenvolver políticas públicas eficazes no combate ao crime organizado.
A BRASIL JÁ entrou em contato com a Polícia Federal do Brasil e a Polícia Judiciária de Portugal pedindo informações sobre a expansão do PCC para a Europa, mas ambas as instituições responderam que não se manifestam sobre as investigações em andamento.
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