Imigrantes enfrentam filas enquanto funcionários da AIMA lutam contra a desmotivação e a falta de recursos. Foto: Déborah Lima

Imigrantes enfrentam filas enquanto funcionários da AIMA lutam contra a desmotivação e a falta de recursos. Foto: Déborah Lima

Presidente de sindicato admite desleixo na transição do SEF para Aima

'Era mentir se dissesse que não', afirmou Jorge Girão, lembrando também que servidores estão exaustos e se sentem abandonados

23/07/2024 às 15:27 | 7 min de leitura
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O presidente do Sindicato dos trabalhadores da Agência para a Imigração e Asilo (Aima), Jorge Girão, admitiu em entrevista à BRASIL JÁ que tem havido desleixo de funcionários de alguns setores na transição do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para a agência.

"[A demora na transição de SEF para Aima] Desmotivou trabalhadores. Admito que em alguns setores têm havido desleixo na função porque as pessoas não viam o futuro, não viam nada a nascer e acho que todos os trabalhadores têm que sentir que estão a participar de algo em crescimento, não de algo que se está a destruir. Isso afetou. Era mentir se dissesse que não”, afirmou Girão.

O que o representante assume já fora constatado pelos imigrantes em solo português. Frequentemente, os estrangeiros enfrentam longas filas e serviços ineficazes ao procurar os serviços da Aima. 

Como a BRASIL JÁ mostra em sua edição de junho —e é recordado por Girão— funcionários da agência estão exaustos e sentem terem sido largados pela administração pública.  Para o Girão, a demora na transição afetou a moral dos funcionários. 

"É inadmissível. Psicologicamente, os trabalhadores ficaram afetados. É a mesma coisa que nos digam assim: 'vamos morrer todos um bocadinho'. Andaram dois anos a dizer que era daqui a três meses, daqui a seis meses, isto não se faz. Isto foi mau para toda a gente", continuou o dirigente.

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Confira a seguir, novos trechos da entrevista:

Como foi a transição do SEF para a AIMA internamente, entre vocês funcionários?
Foi muito dura.

Por quê?
Demorou dois anos. É inadmissível. Psicologicamente, os trabalhadores ficaram afetados. É a mesma coisa que nos digam assim: “vamos morrer todos um bocadinho”. Andaram dois anos a dizer que era daqui a três meses, daqui a seis meses, isto não se faz. Isto foi mau para toda a gente. Desmotivou trabalhadores.

Admito que alguns setores têm havido algum desleixo na função porque as pessoas não viam o futuro, não viam nada a nascer e acho que todos os trabalhadores têm que sentir que estão a participar em algo em crescimento, não em algo que se está a destruir. Isto afetou. Era mentir se dissesse que não.

Foi um processo muito duro, muito difícil. E, basicamente, isto é o que me salta mais à memória da imagem das pessoas, do desânimo das pessoas, dizerem: “mas nunca mais teve o fim a isto, nunca mais começamos nada.”

Durante a transição, havia um receio entre os funcionários de perderem o emprego?

Não. O Estatuto do Trabalhador em Funções Públicas [Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas] em Portugal é muito sólido. Ninguém teve o risco de ficar sem trabalho, isso nunca aconteceu e acho que aí nós também sempre asseguramos.

Houve aqui algumas questões que as pessoas teriam medo de ter que mudar de um local para o outro, uma questão geográfica de proximidade à vida delas, que obviamente tem impacto, mas de questões de desemprego estrutural, não. Essa questão nunca se colocou.

Artur Jorge Rodrigues de Amorim Girão, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Aima. Crédito: Déborah Lima/BRASIL JÁ

Algumas pessoas acham que foi um erro a extinção do SEF, enquanto outras acreditam que foi o correto e que apenas precisa de mais tempo para funcionar. Qual é a sua opinião sobre isso?

É um bocado das duas coisas. Correu mal desde logo o tempo que demorou a ser feito. E depois, correu mal porque quando nasceu este novo organismo, ele já devia vir dotado de duas grandes questões, que eram: mais pessoal e ao nível tecnológico já com sistemas desenvolvidos para que o novo organismo arrancasse com tudo fortalecido.

O problema do SEF a nível documental era precisamente a questão da falta de pessoal e da falta de um sistema informático mais capaz e mais robusto. E isto não foi feito quando arrancou. 

A somarmos a estes aspectos, a Aima arrancou com um passivo, e eu vou dizer o número, porque é o que é o número oficial, mas pode ser mais. Ao menos cerca de 350 mil processos pendentes, não é? E portanto, sem este reforço pessoal e sem este reforço tecnológico, já começou a deficitária.

A Aima ficou com o passivo de trabalho e com menos pessoas na prática. Portanto, isto foi um grande erro logo para começar, e isto correu mal. Efetivamente, precisamos de olhar para isto e de reforçar nestas duas componentes, porque senão, criamos uma coisa que se arrisca a ser um fracasso. 

Ou pelo menos a não melhorar nada do que existia antes. É evidente que não era essa a ideia.

Qual é a área que mais precisa de funcionários?

Evidentemente, temos duas grandes áreas agora. A área do atendimento presencial, ou a criação de mecanismos tecnológicos que possam substituir algumas pessoas nos balcões, permitindo que os serviços sejam tratados online, o que é importante e estamos desenvolvendo. 

Acredito que há serviços que não precisam ser feitos presencialmente, como alguns pagamentos, por exemplo, e outros que podem ser realizados online. Entretanto, há serviços que sempre precisarão ser presenciais, pois envolvem a coleta de dados biométricos, o que é essencial.

Também acho importante reforçar a vertente do acolhimento. Embora alguns imigrantes tenham tido uma boa experiência ao chegar aqui, é necessário considerar aqueles que enfrentam dificuldades de integração. 

Não estou pensando tanto nos pedidos da CPLP, onde há uma integração mais natural devido à questão linguística, mas em outras nacionalidades onde isso não é tão fácil. Acredito que devemos reforçar seriamente este aspecto.

Portanto, é essencial focar nesses dois elementos: melhorar o acesso das pessoas à agência e reforçar a integração. Isso é fundamental.

Durante esse período confuso de transição, e que ainda está sendo ajustado, houve algum caso de sabotagem ou algo grave no sistema? Algum diretor ou funcionário insatisfeito que tentou prejudicar o processo? 

Não tenho nenhum registro disso. Acredito que as pessoas aderiram bem ao novo organismo. Embora algumas pudessem estar desmotivadas anteriormente, no geral, sinto que todos estão empenhados em fazer com que isso funcione.

O que é que você aponta como principal carência dos funcionários da Aima hoje?

Acho que havia necessidade de olhar para eles de uma outra forma e dar-lhes aqui um estímulo profissional para a questão da produtividade. Acho que é necessário. Já sabemos que no plano do Governo isso está previsto, mas precisamos de o ver construído e implementado. 

E depois, sem dúvida nenhuma, precisamos ver entrar gente nova para as pessoas perceberem que a casa vai arrancar, que a casa vai avançar.

Artur, como têm sido as experiências daqueles que trabalham na linha de frente, lidando diariamente com o atendimento a pessoas que frequentemente apresentam grandes reclamações? Como têm sido o estado psicológico e o cotidiano desses profissionais?

Eu tenho dois sentimentos: de frustração, e de alguma incapacidade, porque as pessoas querem fazer mais, gostam daquilo que fazem, mas não conseguem fazer mais. Não há, não conseguem.

Porque o tempo é o que é, os horários estão o que são, e as pessoas não querem fazer mais. Há locais onde os postos até estenderam um bocadinho o horário para tentar atender mais, mas não resolve.

O meu atendimento, por exemplo, ocorreu num sábado.

Pois, também. Na verdade, a procura é tão grande que isso ajuda, mas não resolve. As pessoas também se desgastam, e depois, então, é que não ajuda ninguém. Mas, o sentimento é este, é um bocadinho de frustração e da minha incapacidade de quererem fazer mais e não conseguirem.

Eu tenho gente que me diz, aqui ao final do dia, que, "é pá, não consigo, hoje não consigo, são seis da tarde, tenho que me ir embora", mas já devia ter saído às cinco. Está tudo bem. Digo-lhe "obrigado" porque eu sinto que a pessoa já deu aquilo e tu olhas para a cara dela, e já me aconteceu, e isto, enfim. 

Eu estar sentado na sala, e digo-lhe: "o que é que se passa?" [E respondem:] "Pá, estou estourado, preciso respirar, porque não consigo. Tenho aqui situações de que quero ajudar, mas não consigo, porque o sistema está um bocado mais lento."

Qual é a sua opinião sobre a criação de um novo sindicato para representar os funcionários? Vocês estão trabalhando juntos ou não? Qual é a diferença entre os dois?

Não tenho nada contra, tudo o que seja para definir os trabalhadores, eu sou a favor. Se dois forem mais fortes que um, é sempre bem-vindo.

Mas houve algum diálogo?

Não, não houve. Obviamente eu conheço a colega, também a li nas notícias, que estava a fundar o sindicato, e portanto, não falamos ainda sobre isso, mas...

Mas não há nenhuma rivalidade?

Não, de todo. Nem fazia sentido.

Não há rivalidade, mas também não trabalham em conjunto.

No antigo SEF havia três sindicatos, dois de uma carreira e um de outra. Portanto, é uma coisa que nós já convivemos naturalmente.

Você avalia positivamente?

Claro, sempre. Portanto, tudo seja para a defesa dos trabalhadores, eu acho que... Se não formos nós a lutar por nós, ninguém vem aqui olhar, dar o palmo nas costas e tomar lá.

Você pretende ficar muito tempo ainda?

No sindicato?

E na Aima.

Na Aima eu pretendo. Eu gosto do trabalho. Já tive várias propostas para sair e fui resistindo. Porque gosto da Aima, gosto da área, gosto da temática, cresci nela a trabalhar, a maior parte da minha vida ativa. E gosto dela. Não fecho a porta a um dia que eventualmente saia, mas por enquanto ainda estou bem. Eu tenho muito trabalho, mas sinto-me bem.

Gosto de fazer crescer as coisas, fazer nascer as coisas. E portanto, no sindicato também. No sindicato, a partir do momento em que algumas das questões que eu me propus vejam conseguidas, obviamente, se vier alguém que quer vir para o meu lugar e que tem um projeto e uma responsabilidade maior que a minha, não vou, faz favor. Isto não é meu. O sindicato não é meu, é dos trabalhadores. 

É das pessoas. E se eu ver alguém mais espinhoso, com mais êxito, que tem uma conversa e me dizer, olha, estou aqui, tenho esta ideia, importa isto, queres trabalhar comigo, eu vou avançar, let's go.

Você disse que gosta de trabalhar na AIMA, desde o antigo SEF, não é? Você gosta do seu trabalho?

Gosto do meu trabalho. Gosto da área das migrações.

Por quê? 

Tem tudo a ver com o ser humano. O ser humano é isto mesmo. É a busca, é a conquista, é a partida de algo melhor. Esta questão de interculturalidade é uma riqueza e não é uma competição, um conflito. Não sei se vou conseguir explicar bem.

Eu sempre fui uma pessoa que gostei de viajar. E gosto de viajar, gosto de falar com as pessoas, gosto de estar com as pessoas. Isto para mim é uma vantagem. Eu nunca me lembro de ter tido nenhum conflito com nenhum cidadão imigrante numa questão do atendimento. Ainda que as pessoas às vezes cheguem muito exaltadas.

Eu nasci em Moçambique. Os meus pais estavam lá. E, portanto, não sei se isto ficou cá dentro na minha genética. Quer dizer, da minha casa, toda a vida eu via pessoas a sair de outros países. Eu sempre viajei muito e, portanto, não sei se é por isto que eu me revejo tanto neste trabalho. Não consigo explicar. 

Sei que já tiveram as propostas deste trabalho para sair. Algumas, porque lá até poder ter alguma vantagem financeira, mas sou mais feliz de estar aqui. Portanto, sempre fui ficando.

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