Música, queijos, vinhos e troca estão na proposta tácita da Rua das Pretas, que celebra a cultura portuguesa há mais de dez anos.
A reportagem chegou antes do público, quando a energia da passagem de som tomava o espaço e antecipava o que viria: a união de artistas tocando e cantando em culto à mistura cultural —e de sotaques— que resultou no Portugal de hoje.
Depois de concluída a passagem de som, os artistas foram para o camarim no segundo andar do suntuoso palacete do século 18, situado no Príncipe Real, em Lisboa. Mais do que isso não se pode dizer, porque faz parte do deslumbre de quem chega o segredo do endereço da edição do evento, que tem o nome Rua das Pretas por lá ter começado.
Naquele diminuto e particular espaço e no tempo prévio ao início, ouvem-se sussurros ansiosos pelo que está por vir.
Ajustes feitos, o público acomodado. As taças de vinho nas mãos. Enquanto não começa, Moacyr Luz, o convidado especial da noite, circula pelo salão.
— Como você está?— pergunta um dos presentes.
— Tenho andando devagar, mas já tive pressa — declarou meio a sério e meio brincando, citando letra de Almir Sater e Renato Teixeira.
À frente do palco, meio altar, havia garrafas de vinho e algumas pessoas sentadas em almofadas próximas. O público se espalhou também pelas cadeiras no salão.
Um clássico, então, deu início ao repertório do espetáculo:
Não deixa o samba morrer, não deixa o samba acabar, o morro foi feito de samba, de samba pra gente sambar…
Encerrada a música, claro, em coro do público.
Entre uma canção e outra, o anfitrião, Pierre Aderne, costurava execuções musicais com histórias dos bastidores da cena musical e com boas lembranças que envolvem Tom Jobim, seu estrelado vizinho da Rua Nascimento e Silva, em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro.
Para Pierre Aderne, a Rua das Pretas é uma celebração da riqueza cultural e da língua portuguesa. Ele define o encontro como sendo um grande caldeirão em que se misturam sabores, ritmos e histórias que conectam os presentes com raízes africanas.
"A maneira como o espetáculo envolve tanto artistas quanto o público é mágica; é uma verdadeira dança de saberes e experiências, onde todos são parte dessa construção coletiva”, afirmou o músico à BRASIL JÁ.
Para ele, o circo de sonhos nos convida a refletir sobre a importância da comunidade e da ancestralidade, reafirmando a força das canções populares que muitas vezes carregam histórias profundas e carregadas de significados:
É um espaço de aprendizado mútuo, onde cada um pode trazer seus segredos e saberes, enriquecendo ainda mais essa troca cultural.
Na noite do último sábado, 1º de fevereiro, participaram do show outros grandes músicos de diferentes lugares, enriquecendo a mistura de som e sotaques.
De Madri, Fernando de La Rua; Vila Nova de Famalicão, Cristina Clara; Nilson Dourado de São Paulo; de Santo Antão, a cabo-verdiana Eliana Rosa; e os cariocas Letícia Malvares e Moacyr Luz.
Há 19 anos, Moa toca a tradicional Roda Samba do Trabalhador, no Rio de Janeiro. E, na Rua das Pretas, iniciou sua participação a música “Vida da minha vida”, uma composição sua e sucesso no Brasil na voz de Zeca Pagodinho.
Na sequência “Medalha de São Jorge”, composição de Moa e Aldir Blanc, gravada por nada menos que Maria Bethânia. Com esta última, a plateia se dividia entre cantar junto ou, apenas, se emocionar. Este repórter se juntou ao terceiro grupo, o que cantou e se emocionou.
“Está sendo uma alegria receber pessoas ligadas à cultura nesta noite”, afirmou Pierre ao anunciar alguns presentes na plateia, como por exemplo as atrizes Cláudia Abreu e Úrsula Corona, a publisher da BRASIL JÁ, Gabriela Lopes Siqueira, e seu marido, o prefeito de Maricá, Washington Quaquá, e Fidel Antonio, neto do líder revolucionário cubano Fidel Castro.
Gabriela Lopes não conhecia o sarau e ficou encantada com a união de cultural.
"Fiquei muito emocionada com a grandeza e com a profundidade dessa noite. Foi música, foi reflexão, foi poesia. Um verdadeiro resgate da nossa ancestralidade, da nossa cultura, do nosso modo de vida. Essa mistura dos sotaques em língua portuguesa. Além de falar de amor, de religião, de sincretismo”, disse.
Para o marido, Washington Quaquá, essa pluralidade da língua portuguesa é fundamental: "As diversas origens [da língua portuguesa] são fundamentais para construir um novo polo cultural no mundo e no Brasil."
A construção do sarau começou de forma despretensiosa, com a intenção de reunir artistas e amigos, e virou uma potência que já contou com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Valter Hugo Mãe, António Zambujo, Carminho, Salvador Sobral e José Eduardo Agualusa.
Para o presidente da RTP, a rádio e a tevê públicas portuguesa, Nicolau Santos, o trabalho do projeto é uma celebração da cultura em português.
“O mais interessante é a capacidade que o projeto tem, através do Pierre, de agregar pessoas de todos os países de língua oficial portuguesa. Temos aqui pessoas de Angola, de São Tomé [e Príncipe], do Brasil, de Cabo Verde. Isso é o que de melhor se pode fazer para que nós próprios possamos conhecer melhor uns aos outros”, afirmou.
Num determinado momento, o próprio presidente da estatal recitou Vinícius de Moraes.
"Hoje é sábado, amanhã é domingo. A vida vem em ondas, como o mar. Os bondes andam em cima dos trilhos. E nosso senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar."
A Rua das Pretas está na grade de programação da RTP com doze episódios filmados numa série de concertos nos Coliseus do Recreio, em Lisboa e do Porto. Agora, eles preparam uma exposição em breve.
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