Portugal quer independência (linguística) do Brasil. Crédito: Imagem gerada com IA

Portugal quer independência (linguística) do Brasil. Crédito: Imagem gerada com IA

Portugal quer independência do Brasil

O plano português para separar com IA a variante da língua portuguesa falada por brasileiros

08/01/2025 às 13:45 | 4 min de leitura | Dia a Dia
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No apagar das luzes de 2024, o governo português publicou no Diário da República uma resolução detalhando como será a criação de um modelo de linguagem, com uso de inteligência artificial, que seja próprio e que preserve o idioma do país. 

Um ponto no texto, porém, chama atenção: um dos objetivos da tecnologia será separar variantes da língua, citando nominalmente o português europeu e o português do Brasil. 

Batizada de Amália, a proposta foi antecipada pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro, durante o Web Summit Lisboa 2024, o maior evento de tecnologia e inovação da Europa: 

"Estou a falar português para vos poder dizer, aqui e agora, em primeira mão, que no primeiro trimestre de 2025 vamos lançar um LLM português —Large Language Model— para inovarmos em português, preservando o nosso idioma e utilizando a nossa cultura"

Os Large Language Model, citados pelo primeiro-ministro, são sistemas baseados em inteligência artificial projetados para interpretar, compreender e criar textos em linguagem natural. 

Para isso, os modelos de linguagem usam vastos conjuntos de dados em diferentes formatos, que podem ser em texto, imagens e/ou vídeos. 

A criação do projeto Amália de Portugal está a cargo do Centro para a IA Responsável, em parceria com centros de investigação como a Nova School of Science and Techonology e o Instituto Superior Técnico. 

Para Amália, o que os desenvolvedores têm como missão é colocar de pé um sistema que, tal qual adiantou Montenegro, afirme a "soberania de Portugal" e reduza a dependência de modelos linguísticos estrangeiros no campo da inteligência artificial. 

No cotidiano, as aplicações desses modelos podem ser observadas em assistentes virtuais e chatbots, ferramentas de busca, sistemas automatizados de respostas a perguntas etc.

Amália, a separadora de variantes

O projeto Amália, que custará 5,5 milhões de euros aos cofres públicos, tem previsão de entrega até 2026 e será treinado exclusivamente com dados da variante europeia da língua portuguesa

De acordo com a resolução do governo, publicada em 30 de dezembro, a meta é criar um sistema de inteligência artificial capaz de identificar nuances linguísticas, culturais e regionais, atendendo às necessidades do mercado europeu e garantindo a soberania nacional em aplicações digitais.

O nome Amália é, também, uma sigla para Assistente Multimodal Automático de Linguagem com Inteligência Artificial, e ainda uma referência direta à icônica fadista portuguesa Amália Rodrigues, reforçando caráter nacionalista da ferramenta. 

Crédito: Imagem gerada com IA

Além da missão de distinguir variantes —a brasileira, em específico porque citada—, a tecnologia também deverá otimizar traduções e transcrições em setores como educação, serviços públicos e comunicação empresarial.

O CEO do Centro para a IA Responsável, Paulo Dimas, afirmou à Agência Lusa que a versão inicial de Amália será lançada no primeiro trimestre deste ano, e a versão final em 2026. Segundo o executivo, os desenvolvedores vão trabalhar três pilares fundamentais durante a criação de Amália: a variante linguística do português europeu, a representatividade cultural e a proteção de dados.

Dimas acrescentou que a escolha pela variante europeia do português atende a uma necessidade cultural e prática. 

Ele relatou que, em experiências anteriores, como no projeto Halo —desenvolvido pela Unbabel para pacientes com esclerose lateral amiotrófica que perderam a capacidade de comunicação— foi constatado que "essa fala [dos pacientes que usaram a tecnologia] resulta de texto que muitas vezes é produzido na variante falada no Brasil"

Para ele, o uso da variante brasileira "não é nada natural". O executivo não explicou o que entende por "natural". 

Português 'correto'?

Também na entrevista à Lusa, Dimas afirmou que o modelo Amália será um "peça-chave no ecossistema nacional de inteligência artificial", com aplicação transversal na sociedade portuguesa. 

"Temos uma Amália a escrever português correto, português falado em Portugal, e uma base para a tal representatividade cultural", disse. 

Ao contrário de outras soluções em IA dependentes de gigantes tecnológicos globais, o responsável por Amália afirmou que ela será um recurso tecnológico nacional. 

O treinamento do modelo, detalhou, ocorrerá com apoio de supercomputadores, incluindo um parcialmente português, mas que, ironicamente, é baseado em Barcelona. 

A IA como tutora educativa

Em novembro de 2024, ao discursar no Web Summit, Montenegro afirmou que Amália também atuará como tutora educativa de alunos da rede de ensino, com uso do português adaptado aos currículos portugueses. 

O primeiro-ministro acrescentou que a ferramenta também fará com que o acesso aos serviços da administração pública ocorra de forma mais simples, mais direta e personalizada, para responder às necessidades da população.

A opção por uma tutoria educativa baseada em inteligência artificial surge no mesmo contexto de barreiras burocráticas que impedem o reconhecimento de diplomas de professores estrangeiros em Portugal. 

Como a BRASIL JÁ adiantou, são, principalmente, docentes brasileiros que sofrem com as dificuldades administrativas de homologar competências.

Identidade linguística ou divisão cultural?

Ao institucionalizar diferenças entre as variantes linguísticas, a criação de Amália cria barreiras culturais dentro do cosmos dos falantes de língua portuguesa. 

Críticos apontam que a variante brasileira, que em Portugal comumente se tenta dar um tom pejorativo chamando de brasileiro, tem sido alvo de discursos que refletem tons xenófobicos e preconceituosos.

À BRASIL JÁ, a professora e doutora em língua portuguesa Ana Rosa Vidigal afirmou que a língua e suas variantes, moldadas pelo tempo e pelo espaço, não podem ser isoladas em seus traços. 

Segundo ela, qualquer tentativa nesse sentido resultaria em uma espécie de involução, restringindo o processo natural de criação humana, caracterizado pela inventividade e pela troca mútua entre os diversos aspectos da própria língua. 

MAIS: Variantes da língua portuguesa enriquecem o idioma, diz professora

Além disso, ela acrescentou que os elementos que compõem a língua se transformam continuamente à medida em que são praticados por diferentes povos e nações, refletindo a dinâmica cultural e social dessas comunidades:

"A automação da língua portuguesa pode parecer uma nova forma colonial de se estabelecer padrões pela inteligência artificial e reduzi-la, empobrecê-la e não ampliá-la e enriquecê-la" 

Para a professora, a língua, em toda a sua diversidade, dinâmica e adaptabilidade, desempenha um papel central como fonte de união entre culturas, prevenindo o afastamento ou o isolamento cultural. 

A pesquisadora disse que qualquer tentativa de padronização com objetivo de hegemonização "compromete profundamente o propósito essencial da língua, arrancando suas raízes e enfraquecendo o legado de fortalecimento cultural e identitário, tanto em nível coletivo quanto no conjunto das sociedades".

Mais ainda, Vidigal indica que a iniciativa de Portugal com Amália levanta questões importantes sobre como o avanço tecnológico pode impactar relações culturais e históricas entre países. 

Embora tecnicamente viável, a separação de variantes desafia os ideais de unidade e colaboração no espaço dos falantes de português.

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