Nonato Viegas

Diretor de Informação e editor-chefe da BRASIL JÁ

Nonato Viegas

Portugal grande de novo

Olhar para o passado de forma menos romântica e mais realista não irá reduzir a grandeza histórica de Portugal, mas atribuir grandeza ética ao Portugal do presente

21/06/2024 às 14:50 | 4 min de leitura

O plenário do Senado brasileiro estava agitado. Era o último dia de discussões para a aprovação da Lei Áurea, assinada nove dias antes pela princesa Isabel de Orleans e Bragança em substituição do pai, o imperador dom Pedro 2º, que estava fora do país. No dia seguinte, 13 de maio de 1888, a lei seria sancionada, pondo fim aos 388 anos de uma economia lastreada no trabalho escravo.

O senador João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, subira à tribuna querendo mudar o voto de seus colegas abolicionistas. Ele não conseguiu, mas disse aos brados: “A verdade é que há de haver [com o fim da escravatura] uma perturbação enorme na paz. A crise será medonha. Preparemo-nos para os novos combates”. A paz, para o barão, era a manutenção do contexto em que ele, um homem branco e herdeiro, mantinha sob todo o tipo de violência homens e mulheres pretos, traficados do continente africano.

Seu colega, o senador Paulino de Souza, somou o cinismo ao debate: “A proposta que se vai votar é inconstitucional, antieconômica e desumana (...) porque deixa expostos à miséria e à morte os inválidos, os enfermos, os velhos, os órfãos e crianças abandonadas da raça que [se] quer proteger”. Uma vez libertos, discursou, não contariam com “a proteção do seu senhor”.

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Cínico, o mesmo Paulino de Souza, e seu colega, o Barão de Cotegipe, articularam uma vitoriosa frente contra qualquer pagamento de indenização ou amparo aos cidadãos brasileiros vítimas da escravização. Milhares de homens e mulheres foram jogados para as margens da sociedade, porque, nas lavouras, foram substituídos por imigrantes europeus (portugueses, italianos, alemães), que chegavam aos borbotões, fugidos da fome e da miséria.

O Estado brasileiro abraçou os imigrantes brancos, dando-lhes terra e subsídios para a produção agrícola, enquanto os traficados pretos, não mais escravizados, foram largados à sorte. Cento e trinta e três anos se passaram até que o Brasil desse início ao seu processo de reparação. Começou por admitir que no passado o Estado não foi justo para com parte de seus cidadãos. E que o fato de a maioria negra (pretos e pardos) do país sobreviver em contextos de pobreza e ausentes dos espaços de poder, branco, era fruto da ação —a decisão de não fazer nada é uma ação— e do próprio Estado. A admissão de responsabilidade —atenção à palavra responsabilidade— é fundamental para a compreensão do que é reparação.

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A introdução deste texto é fundamental porque quero convidá-lo a ler de coração aberto a edição deste mês, em que tratamos das consequências de um passado de colonização que dividimos, nós, os falantes da língua portuguesa.

Chamo sua atenção para dois pontos de matérias e entrevistas recentemente publicadas nesta BRASIL JÁ:

1. A fala da socióloga Cristina Roldão. A socióloga em entrevista às jornalistas Déborah Lima e Stefani Costa marcou a diferença de responsabilidade do Estado português e suas elites no tráfico de pessoas do continente africano. É que alguns, com o objetivo de turvar as discussões e, de má-fé, desinformar as pessoas, disseminam ideias falsas de que reparar o passado significa culpar o povo português, que em sua maioria é humilde e nunca viu sequer por onde passou nem aonde foi parar o dinheiro do tráfico de seres humanos.

Culpar a população portuguesa seria o mesmo que culpar os imigrantes europeus que, fugindo da fome, da miséria e do fascismo, encontraram no Brasil um lugar onde pudessem reconstruir a vida. Se foram recebidos com políticas públicas e puderam contribuir para a sociedade brasileira enquanto o Estado fechava os olhos para outros cidadãos, não foram eles os culpados nem os responsáveis, mas o Estado, que deveria abraçar os recém-chegados e amparar as vítimas do tráfico e da escravização.

2. A entrevista exclusiva do presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, à BRASIL JÁ. Nela, ele defende, em resumo, que as discussões sobre as consequências da colonização —e uma das piores é o racismo estrutural— sejam tratadas no silêncio dos salões governamentais e não no barulho público da rua.

Ele entende que a extrema direita prejudica o debate. É razoável o raciocínio do presidente, mas discordo dele profundamente.

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São princípios fundamentais da democracia transparência e liberdade de expressão para a livre circulação de ideias. Democracia se faz por meio do convencimento. Discutir publicamente as consequências do passado que Brasil, Portugal, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste partilham é um imperativo ético e moral para a construção conjunta —entre cidadãos e governos— de saídas dignas às pessoas e ao que estão submetidas.

Não fosse o mínimo de transparência não poderíamos julgar, hoje, a história da Lei Áurea no Brasil. Não saberíamos de que lado da história estavam o Barão de Cotegipe e outros na sessão do Senado que aprovou o fim do regime de escravidão. Que argumentos cínicos utilizaram. Nem que, derrotados, se articularam, como vingança, para derrubar a família real num golpe militar —sim, um golpe— que instalou a república no país.

Nenhuma discussão sobre reparação em Portugal —e repare, leitor, não falo de dinheiro, indenização ou devolução— pode avançar sem que o primeiro passo seja dado. É reconhecer que 1. existe racismo e que, dele, é consequência o certo estado de coisas, que vão desde o lugar que se atribui a determinadas pessoas no conjunto da sociedade (sugiro a leitura da entrevista de Claudia Simões, agredida por agentes da PSP, à BRASIL JÁ) até a situação econômica e social de determinados países; e 2. admitir que parte da responsabilidade dessas consequências é do Estado português.

Olhar para o passado de forma menos romântica e mais realista não irá reduzir a grandeza histórica de Portugal, mas atribuir grandeza ética ao Portugal do presente e garantir a construção de um futuro grande ao país, onde cabe a diversidade cultural, étnica, linguística que fez com este pequeno país peninsular marcasse o mundo. No mais, boa leitura.

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PAULO VITOR MELO: Narciso diante do espelho: breve notas sobre reparações e colonialismo

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