Nonato Viegas

Diretor de Informação e editor-chefe da BRASIL JÁ

Nonato Viegas

Não, racismo não é crime em Portugal

Ora, se a lei que trata de racismo confere a uma comissão administrativa e não a Justiça o dever de punir o racista, racismo não é crime

18/09/2024 às 10:59 | 3 min de leitura

O leitor da BRASIL JÁ nunca foi enganado. O nosso Estatuto Editorial, que é a bíblia dos órgãos de comunicação social, é cristalino quanto aos nossos princípios. A “BRASIL JÁ repudia todas as formas de preconceito [...]” e defende intransigentemente o respeito a valores sem os quais uma sociedade não se desenvolve. A defesa dos direitos humanos é um desses princípios.

Dito isso, temos cumprido com nosso compromisso. Para citar o racismo, em pouco mais de oito meses de existência, a revista dedicou mais de oitenta textos abordando o tema —uma média de um artigo a cada três dias.

Acreditamos que parte do papel social do jornalismo é contribuir para a formação de uma massa crítica, capaz de construir equidade entre as relações humanas, então, não obstante as conquistas incontestes do 25 de Abril, é forçoso afirmar que o racismo ainda é um problema social, cuja solução passa por sua criminalização.

Não, o racismo não é crime em Portugal.

Sermos assertivos quanto a este fato gerou reação negativa em duas ocasiões.

Ao publicamos a reportagem “Quase 30 anos depois de Alcindo, racismo ainda não é crime em Portugal”, das repórteres Déborah Lima e Stefani Costa, um jornalista de um veículo português achou que havia motivo para nos corrigir.

Adiante, também houve reação a um texto do editor Nicolás Satriano explicando porque em Portugal a racista que atacou os filhos do casal Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso não seria punida como foi no Brasil outra racista, que igualmente os atacou. O grosso das mensagens recebidas no email da Redação pode ser resumido nesta: “Veja o nível do jornalismo brasileiro: errado, em Portugal racismo é crime!”

Não, não é, digo enquanto pressiono a agulha contra a linda bolha branca em que vivem alguns leitores.

Dois textos principais norteiam a questão no país: a lei 93 de 2017 e o artigo 240 do Código Penal.

Na lei 93, se inscreve: se “estabelece o regime jurídico de prevenção, proibição e combate à discriminação em razão da origem racial e étnica, nacionalidade, ascendência e território de origem”. Ao longo de seus artigos, como é próprio das leis, o texto aponta quem pode se beneficiar dela; dirime questões semânticas; descreve as suas proibições; e, por fim, define a punição a seus descumpridores.

Por determinação da lei, quem cuida da sua aplicação não é a Justiça. É a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, cuja competência é —são verbos da lei— recomendar, propor e promover. O órgão, no máximo, aplica multa. Mas, via de regra, recomenda e propõe.

Em sua edição 1, a BRASIL JÁ entrevistou o ativista antirracista Mamadou Ba, que compôs a comissão. Ele nos disse: “Durante o meu mandato, nós só fizemos uma condenação efetiva. Uma. O meu mandato durou quatro anos. 84% dos casos [denunciados] ou prescrevem ou são arquivados. Quando um instrumento do combate ao racismo tem esse nível de ineficácia significa que o Estado não tem vontade de combater o fenômeno”. Indico a leitura da entrevista.

Já no artigo 240 do Código Penal se inscreve: são passíveis de punição quem “fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda [discriminatória]”. Diz mais: também pode ser implicado o sujeito que, por meio de propaganda pública de incitação “aos crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade”, causar atos de violência, difamar, ameaçar e incitar a discriminação. Nesses casos, pode haver punição com pena de prisão que varia entre seis meses e 5 anos.

Ou seja, se o racista não participa com dinheiro ou trabalho em um grupo criminoso com o objetivo, veja, de propaganda, está OK, não é crime. A interpretação não é minha. É do Ministério Público, que, ao lado dos advogados, é o principal operador do direito.

Conforme deu com exclusividade a BRASIL JÁ, o argumento que os promotores desenvolveram na denúncia contra a mulher que atacou os filhos de Ewbank e Gagliasso foi o de que ela não poderia ser enquadrada no artigo 240 porque seu intuito precisava ser o de divulgar suas falas em meios de comunicação ou meio informático (propaganda).

Ora, se a lei que trata de racismo confere a uma comissão administrativa e não à Justiça o dever de punir o racista, racismo não é crime.

Mais do que isso.

O Código Penal português entende que o racismo só existe por meio da propaganda pública de extremistas ou na fundação de um grupo terrorista.

O racismo se manifesta —e precisa ser impedido— na dificuldade do acesso ao emprego, ao serviço público, na abordagem policial (outros exemplos: aqui, aqui, aqui)

O racismo se manifesta no xingamento (caso da família Gagliasso), no desprezo de quem está em posição de poder. O racismo está no debate e na ausência do debate sobre o racismo.

É eloquente o que diz uma sociedade que defende o direito do branco ser racista e se silencia na proteção da dignidade humana do não branco.

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